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sábado, 26 de novembro de 2005

Os labirintos de Nelson de Oliveira (Nilto Maciel)


Estreou Nelson de Oliveira no gênero conto em 1997, com Os saltitantes seres da lua. Seguiram-se Naquela época tínhamos um gato (1998), Treze (1999) e Às moscas, armas! (2001). Em 2004 a Editora Lamparina, Rio de Janeiro, editou Pequeno dicionário de percevejos – Os melhores contos de Nelson de Oliveira. E é sobre este que se escreverá a seguir.

Em “Éramos todos bandoleiros” um menino conta as mil peripécias da infância com os amigos Alex, Franco, Felipe, Denis e Giba. O leitor, contudo, só perceberá no decorrer da narrativa que tudo não passa de jogo da imaginação infantil. Desde a primeira frase, ou desde o título, imagina um bando em ação: “Denis, sobrenome Pênis, estava encurralado”.Somente quando um dos personagens se refere à mãe de outro, concluirá o leitor que os bandoleiros são de mentirinha: “Aquela não é a sua mãe, ela está nos observando, Alex disse”.Veja-se: o contista não usa o vocábulo “bandido”, tão banal hoje, mas “bandoleiro”, como a querer situar a história no terreno do imaginário infantil, do tempo dos gibis, em que bandoleiros enfrentavam o xerife. “Meia hora depois, cem anos haviam se passado. Não éramos mais bandoleiros, não estávamos no Texas”.Mais adiante se transformam em índios. Os meninos brincavam no “jardim da casa abandonada”, no mato, nos trilhos do trem. Conto de ternura, da ternura das crianças, do mundo do faz-de-conta.  

O narrador de “Vôo” é enigmático: “Estão sobre os meus ombros os dois sujeitos” (...), “pisaram sobre minhas pernas, andaram até a estrada, voltaram há pouco e agora estão sobre minha cabeça”, (...) “pisam sobre os meus ossos, sobre a desgastada lápide deitada no musgo”, (...) “e eu, amordaçado, sob torrões de concreto morto, não sei até quando isso irá continuar”.Poderá ser uma estátua, uma tumba, um morto. O mundo caótico dos meninos a brincarem dá lugar ao mundo caótico dos cemitérios, dos mortos.

Nelson de Oliveira não repete fórmulas nem enredos. Em “O homem invisível” o narrador onisciente conta a história de um dedo-duro ou de um romancista que tudo vê e sabe (“Dizem que ele realmente estava do lado de fora, no meio dos pedestres, assistindo a tudo, e que até tentou impedir o assalto”) (...), mas quase não é visto. O narrador não se revela, a não ser numa frase, também obscura: “Não conversamos muito depois disso”.Ou nesta, anterior: (...) “o homem invisível não foi mais visto entre nós”.O protagonista é o homem invisível: ora porque vai desaparecendo aos poucos (primeiro “quebraram-lhe os dentes e amputaram suas mãos”; a seguir “tiraram-lhe as pernas”; depois “metralharam-lhe os braços”; e finalmente “Bronson em pessoa cortou-lhe as orelhas, os lábios e o pescoço”), ora porque, “apesar de exímio romancista”, os seus livros “não vendiam lá muito bem”. No entanto, o mundo do crime, da violência, é apenas pano-de-fundo para a verdadeira história (que não tem importância) – a da invisibilidade (metaforizada).

As personagens de Nelson de Oliveira não são heroínas ou pin-ups. Também não são mulheres comuns, donas-de-casa, comerciárias. São, antes, mulheres obscuras, às vezes sem contornos, como sombras. Em “Uma velhota” a personagem vendia doces e bolos em fatias, como a bruxa do conto de fadas. O narrador pensa “em expulsá-la com um objeto qualquer, uma vassoura, um guarda-chuva”. Por que o personagem precisaria de uma vassoura, como se a senhora fosse uma barata, um gato, um animal? No final, o narrador se irrita ante a preocupação da mulher com o seu “aspecto doentio” e a chama de mamãe. A mulher de “Sob si mesma” é antevista pelo narrador, como se se ocultasse dele “há vinte anos”, trancafiada no “quarto vizinho”. Para ele, há uma mulher ou, melhor, o corpo de uma mulher, “caído no chão, bastante machucado”, no quarto vizinho. A seguir desiste da hipótese da morte da mulher, que estaria apenas “muito ferida, sim, talvez com as pernas e os braços quebrados”. Ou talvez não se trate de uma mulher no quarto, mas somente “o grito de uma criança, de um gato ou simplesmente do vazio num quarto abandonado”.A mulher talvez nem existisse. Talvez fosse apenas uma expectativa de ser. Brunilda, de “Nada do que é humano me é alheio”, é “professora universitária e prostituta”. Como outros, salta de um edifício, num suicídio coletivo, “cai dando piruetas dignas de trapezistas de circo”. Marli, do conto que leva esse nome, “perfeita no dimensionamento de suas armadilhas”, é uma fantasia, um fantasma que “carregava dentro de si todos os sinais de que já estava pronta para levantar vôo”. A personagem “cheirava a sexo”, usava brincos, pulseiras, óculos, camiseta e saia com franjas e “hipnotizava a mim e também a si mesma quase sem se dar conta disso”.Marli é um corpo coberto de antigos espectros, “entidades firmes, porém preguiçosas e desiguais.”

E por onde andam os personagens de Nelson de Oliveira? Às vezes não andam, não perambulam – estão confinados em quartos, prisões, calabouços, labirintos, presos nas malhas de si mesmos. O protagonista de “Gago” procurava o molho de chaves “entre os livros da estante, embaixo da cama, atrás do armário”, “dentro das gavetas, entre os papéis”. “Gago arrastou-se resolutamente para dentro do calabouço”. Em “Fora do quarto à noite” Edgar “sobe os degraus da pensão”, vai até a cozinha. E vê fogo no quarto. Entretanto, “todo o fogo que não vem de mim mesmo, pensa ele, é em essência impenetrável”. É um ser preso em si mesmo. Há também os logradouros, como em “Ruas”. O narrador se refere a uma rua dos Cães, onde “há um dobermann descomunal”. Uma rua de São Paulo que vai dar em Buenos Aires. “Uma única e extensa linha, de leste a oeste”.A rua primordial do narrador.

Os animais assumem papéis preponderantes em alguns contos de Nelson. São fundamentais nas tramas. Não são meros adereços, como animais de estimação ou de criação, freqüentes em muitos narradores. Não tanto a “família de porquinhos-da-índia vivendo numa gaiola improvisada” do protagonista de “Éramos todos bandoleiros”. Porém o gato e o cão de “Naquela época tínhamos um gato” são essenciais. Assim também os cães de “Ruas”, todos com “línguas de fora, ofegantes, afiadas”, o terror do protagonista. Bem como os gatos e os papagaios de outras ruas. Gatos siameses, persas, angorás, todos audaciosos, em perseguição ao personagem.

Estender-se na análise dos personagens pode fazer o leitor-crítico deixar de lado a linguagem de Nelson de Oliveira, que é um dos aspectos essenciais em sua obra. As narrativas são constituídas quase sempre de narrações caóticas de personagens, protagonistas ou não. As ações, por não seguirem uma ordem lógica, se superpõem, conduzindo o leitor por labirintos e selvas de frases. Em alguns contos as palavras ou os vocábulos são recriados, dando às frases feições de enigmas. Não é novidade, mas não deixa de ser sugestivo dar como título a primeira frase da narrativa, como se vê em “Naquela época tínhamos um gato”. Na verdade, a história se inicia com a frase: “Mas não o suportávamos”, continuação do título. Também não é novidade dar aos personagens nomes simbólicos, descritivos, ou cognomes, mas isso não deixa de ser fascinante. Em “O Gago”, além do protagonista do título, há ainda Palhaço e Boneca. Outras vezes o contista substitui substantivos por frases do dia-a-dia ou clichês, para nomear os personagens, como em “Não sei bem o quê, aqui”, cujo título “explica” a dúvida do narrador. Assim, o primeiro a surgir é Não Sei Bem O Quê, seguido de Quem Você Pensa Que É e de Prazer Em Conhecê-lo.

O jogo verbal em “Doce dilema azul de bolinhas amarelas” é quase um quebra-cabeça: “O homem baixo de cabelos negros, vestindo camisa amarela de botões azuis, chamou o guarda negro de cabelos baixos, vestindo camisa azul de botões amarelos” (...). Um constante jogo, um ziguezigue de palavras conduz o leitor por um labirinto. O azul dos botões do homem se transporta para a pele da mulher; o amarelo da camisa dele, para os cabelos dela; a estatura baixa dele, para o tamanho da blusa dela, e assim por diante.

Gilmar de Carvalho, com Pluralia Tantum, livro editado em 1972, em Fortaleza, e que deve ter chegado aos olhos de poucas pessoas, elaborou contos, por ele chamados de legendas, a partir da recriação de clichês. Nelson de Oliveira não o imita e talvez nem o conheça. Mas realiza uma escritura semelhante ao do escritor cearense. Vejamos algumas jóias deste: “mosteiro da paciência”, “quarta-feira têxtil agrícola”, “clássico (das multidões) da língua vernácula”, “cotação de ações e omissões”. E de Nelson: “calçando polichinelos”, “dona de uma íngua ferina”, “colar de chistes” e muitos outros achados.

Os personagens de Nelson de Oliveira parecem percorrer labirintos reais e imaginários, Teseus e Ariadnes em busca da saída. As ruas por onde andam não conduzem a lugar nenhum. “Certo ou errado, todos – moços, senhores, garotos, velhos –, depois de seguirem até o final da rua e desaparecerem nele, jamais fizeram o percurso inverso” (...), como se vê em “Lá”. E mais adiante: “Estariam desaparecidos, em algum ponto do fim do mundo, perdidos para sempre”.Não há saída para eles. Em ambientes fechados, como se fossem microcosmos, ocorre a mesma perdição e a mesma solidão. Até os meninos são personagens do labirinto ancestral e mítico, livres nas ruas, nas casas abandonadas, nos quintais, embora “simples mortais” “condenados à irrealidade cinzenta do dia-a-dia.”

Como não há caminho sem passos, os seres pisam o chão ou o ar em ziguezagues, e as tramas se fazem também labirínticas nos contos de Nelson de Oliveira.
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