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quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

A lenda de um reizinho - capítulo exótico (Nilto Maciel)


Fui o primeiro deles. Assim, posso falar a respeito de nós, inclusive dos mortos. Eu me sabia superior aos homens em todos os sentidos. Depois de mim veio aquela onda de dar aos bebês humanos o meu nome. Talvez assim esses futuros cidadãos se parecessem comigo. Além disso, o controle da natalidade deixou de interessar aos casais. Todo mundo queria procriar. Para ter filhos como eu. Logicamente que o fenômeno não se deu da noite para o dia. Antes de um ano de idade, meus cinco primeiros homônimos moravam no mesmo prédio onde eu vivia. Fora daí ninguém mais sabia de mim. Porque meu pai fez chantagem com os pais desses pobres meninos. Se revelassem o segredo de minha excelência genética, ai deles. Doenças terríveis, demência, vinditas extraterrenas.
Esses cinco homens abençoados tiveram a graça de nos visitar por acaso. Souberam do nascimento de uma criança num dos apartamentos do prédio e acharam aquilo digno de curiosidade ou zelo. A mãe seria uma garota de uns dez anos de idade. No mesmo dia nasci. Moravam meus pais vizinhos à infeliz menina. Bateram os cinco curiosos à nossa porta, sob ameaças. Falaram de crime, barbaridade, desrespeito às crianças e coisas assim. Arrombariam a porta, se não lhes dessem passagem pacífica. Eu mesmo a abri, com a ajuda de uma cadeira. E conversamos até mesmo sobre a hediondez praticada na mãe de dez aninhos.

Difícil é falar do espanto dos visitantes. Nenhuma palavra humana será disso capaz. Um me chamou de boneco, outro de bruxo, um terceiro de diabo. Meu pai me socorreu a tempo. Explicou tudo pacientemente, apesar da ira, do medo, do desespero, da impotência daqueles cinco zeladores. Negavam tudo, minha presença, minha palavra, meu gesto, minha existência, minha possibilidade, e arregalavam os olhos, gritavam, se esmurravam – quase loucos. Até que ouviram a primeira versão da chantagem. E de repente fecharam os olhos, calaram-se, aquietaram-se – mansos e crentes de tudo.

Esses meus homônimos entram na nossa crônica de forma esdrúxula, porque nada os assemelhava a mim e a meus semelhantes. Nunca passaram de meninos comuns. De qualquer forma, tiveram sua importância um dia, quando foi decretada a eliminação de todas as crianças de nome igual ao meu.

Coitados desses meninos humanos! Numa só noite milhares deles desapareceram. Dos nossos, porém, apenas quatro ou cinco não escaparam ao ferro. Os salvos, também quatro ou cinco, refugiaram-se debaixo d’água.

Para os assassinos sua tarefa se cumpriu integralmente, enquanto nasciam outros semelhantes meus.

Sempre fomos minoria, apesar de em determinado tempo existi-rem vários milhares de homônimos meus, muito depois da chacina oficial.

Nasce-se como eu ou o comum dos homens. E isso não conseguiram entender nem os pais de crianças normais nem os assassinos.

Passada a época da repressão, virei professor. Ora, apesar de ser uma questão de nascença o ser como eu, aprender é preciso. Aprendi muito com os homens, inteligentes e idiotas, pobres e ricos, orientais e ocidentais, selvagens e civilizados. Assim, resolvi passar aos meus semelhantes os meus conhecimentos. Nada de meninos comuns. Esses não me compreendem. Fiz disso minha profissão durante alguns anos, até formar meus substitutos. Aposentei-me. E veio a decadência.

Alguns de meus alunos foram de imediato comprados a peso de ouro ou alugados aos nobres europeus e orientais, gângsteres americanos e tiranos da América e África.

Antes disso, porém, já compravam, a baixo preço, de pais pobres que não podiam enviá-los à escola e criá-los à nossa maneira. De meus oitocentos alunos nem todos estudavam às custas dos pais, mas de seus compradores ou alugadores.

Depois da escola, dediquei-me simplesmente a pesquisas. O tempo passava e já existiam milhares de semelhantes meus, umas centenas maduros e alguns poucos quase velhos. Os compradores preferiam os adolescentes, de quem faziam preceptores de seus filhos. Com isso queriam fazer destes excelentes homens, para mais tarde vendê-los.

Os velhos também tinham boa cotação, em razão da experiência e dos conhecimentos adquiridos. Geralmente, porém, já viviam a serviço de filhos de nobres, burgueses e estadistas. Alugá-los, no entanto, era mais rendoso, porque o envelhecimento ou a morte repentina representavam prejuízos enormes. A menos que estivessem com saúde.

Durou algum tempo esse tipo de comércio. Depois as coisas mudaram de figura: só se comprava um semelhante meu para revendê-lo e não mais para criá-lo e fazer dele preceptor. A vez dos especuladores, intermediários.

As notícias de lucros fáceis, ao chegarem aos meus ouvidos, tocaram fundo minha fome de poder. Decidi comerciar também. E saí pelo mundo com o intuito de comprar meus melhores ex-discípulos. Estive no Oriente Médio. Os árabes não cediam suas mercadorias nem por mil barris de petróleo. Na Índia não as cediam nem por toneladas de filosofia. Na China não as trocavam nem por duas Formosas. Na URSS os burocratas não as trocavam por nenhuma regalia.

Numa Feira Internacional encontrei um eslavo velho, quase de minha idade. Seu preço, um absurdo. Noutro stand deparei um africano negro, na casa dos quarenta anos. Ser jovem compensava sua má qualidade ou origem. Um argentino, de meio século de vida e peronista, revelou então minha identidade, e adeus sossego. Apareceram os comerciantes, e eu acabei comprado. No leilão, fui vendedor de mim mesmo. Vendi-me a um reizinho de uma ilha dos confins do mundo.
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