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quarta-feira, 22 de março de 2006

O pecado genial do dr. Ípsilon (Nilto Maciel)



Apressou o passo, impelida pela fome e pela vontade de fugir daqueles olhos maliciosos. Abriu, barulhentamente, o portão, voltou-se para a rua e viu na calçada apenas crianças a brincar de roda. Distraída, arrancou uma malmequer e a jogou ao meio do jardim. Todo dia sua mãe lhe dizia: deixe dessa mania de arrancar as flores. Um dia ainda você vai se estrepar.
Sentia-se morta de fome. Que seria a janta? Lavou as mãos na pia e sentou-se à mesa. Os velhos esfriavam suas sopas, calados. Meteu a colher no fundo do prato e espalhou as tiras de verdura e os fiapos de macarrão. A fumaça subiu mais rápido e mais espessa. Soprou fufufu, mas não resistia mais, jurava, ia beber a sopa quente mesmo. A primeira colherada queimou-lhe os lábios e a ponta da língua. Vomitou no prato. Deixe de ser mal educada. Voltou a soprar fufufu e a mexer a sopa com a colher. Mexeu soprou mexeu soprou mexeu soprou. Não está tão quente assim, Bruna. Tome logo, antes que esfrie. Ela obedeceu, porém não meteu toda a colher na boca. Beijou-a e sorveu um golinho somente. A seguir, pôs-se a beber a sopa com avidez. De repente o prato levantou as patas traseiras. O resto da sopa, já entre morna e fria, derramou-se sobre a borda da mesa e em seu vestido. Os velhos se espantaram e desviaram os olhos para o prato, ainda de patas erguidas. Tiras de verdura e fiapos de macarrão se espalhavam lentamente sobre a borda da mesa e desta para o vestido de Bruna. Todos de olhos arregalados. Que foi? perguntaram os pais em voz alta. Ainda não aprendeu a tomar sopa? É sempre assim, essa sujeira. Bruna não compreendeu nada. A primeira e última vez que derramara sopa fazia uns três anos, lembrou-se, num átimo. Não tivera culpa. Nem sequer tocara a mão no prato. Encostou então a colher, disse o pai. Fez força e o prato perdeu o equilíbrio, completou a mãe. Não, não fizera força. Jurava. Não? E quem foi então? Bruna afastou a cadeira com estardalhaço, levantou-se, lépida, e correu ao banheiro. Mude esse vestido, gritou sua mãe, nervosa. Lavou mãos e pernas e dirigiu-se ao quarto. Despiu-se apressadamente. Quando se viu no espelho, nua, sentiu um ligeiro arrepio percorrer-lhe o corpo, como se mãos medonhas deslizassem sobre ele. Como se uma língua viscosa lambesse sua alva pele macia. Como se uns olhos de fogo penetrassem sua nudez. Olhou em volta e só viu a cama, o guarda-roupa e a penteadeira. Sossegou, escolheu outra calcinha e a vestiu, deitada, erguendo as pernas. Olhou-se e sentiu novamente as mesmas sensações de um minuto atrás. Vestiu um vestido velho, caseiro e curto. Precisava fugir daquele quarto. Daqueles olhos maliciosos. Apressou o passo e transpôs o umbral da porta. Lá fora a meninada brincava de roda. Do jarro sobre a mesa arrancou uma bem-me-quer e ...
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