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quinta-feira, 27 de abril de 2006

Teoria da desfiadura (Nilto Maciel)




Eles vão chegar, mais hora, menos hora. Ofegantes, embravecidos, cientes de me poderem pegar e matar. Porém não me pegarão nem me matarão. E voltarão decepcionados, porque eu sei o que sou e fui.

Um dia, eu tinha doze anos e o tempo não passava nunca, aquela pintura desbotada diante de mim. Na lama, afundavam-se meus pés, feito bichos medrosos. Ao meu redor tudo se expandia e eu nem olhava com pena de minha pequenez. Todo dia esse sempre estar só, muito triste. Acocorava-me ao pé da bananeira pensa, a olhar, distraído, para as minhocas que se contorciam no charco do quintal. Minha mãe não chorava, mas espantava as galinhas, os urubus e o sol para não se lembrar dos gritos de meu pai. E aguava o chão de manhã e de tarde, com medo da seca. 

Nesse perseguir, com os olhos, as minhocas, eu tive uma idéia.

Eu era a meada de lã do sapatinho inconcluso. Novelo colorido no colo de minha mãe. Se puxasse a ponta do fio, me desenrolava todo, me desfiava. Mamãe me chamava aos gritos, afobada, vasculhava o quintal. Fugiu, o capeta. Trepou no muro, feriu-se nos cacos de vidro, foi-se embora. Louca e muda, me encontrava estirado ao longo do chão, enrolado nas bananeiras apodrecidas, sujo de lama, feito um porco, confundido com as minhocas.

Puxei a pequenina ponta, forcei, primeiro com as pontas dos dedos, depois com a mão fechada, senti que conseguia, a ponta crescia, eu me desfiava, tudo escurecia e eu me perdia num quintal esquisito, sombrio, e o medo me agarrava pelas canelas e me arrastava para os pés de Nosso Senhor.

Cresci. A idéia se enroscou em mim, feito cobra. Por que não desfazer a meada, com dor, sacrifício, intensidade? Acreditei ser necessário difundi-la, por mais absurda que parecesse a muitos. A vez de descobrir meus semelhantes, fazê-los aprendizes, doutriná-los. Alguns poucos ouviram e abaixaram as cabeças. Falei e falei. Discutimos e elaboramos novas idéias, um programa de lutas e objetivos. Criava-se o embrião do grupo.

Três anos após, registramos o partido e concorremos às eleições. Lutamos nos palanques apedrejados e incendiados pelas turbas. Gritamos nas mesas dos bares. Hasteamos bandeiras que causavam risos fabulosos. Propusemos a criação de entidades públicas de defesa dos direitos de nossos adeptos e apresentamos projetos de lei que reformulassem todo o sistema educacional, dando aos estudantes uma noção exata do direito de desfiar o novelo.

É minha a frase que se tornou célebre e serviu de estopim para a guerra contra nós desencadeada: “Enquanto somos capazes de dar a vida pelos nossos ideais, vocês são capazes de tirar a vida dos outros pelos vossos.” No mesmo dia nosso partido foi posto na ilegalidade e uma grande onda de perseguição se abateu sobre nós. Os que não conseguiram fugir para o exterior se viram imediatamente presos e executados.

Agora eles virão me buscar, ávidos de sangue em suas mãos assassinas, ofegantes e embravecidos, cientes de me poderem pegar e matar. Porém eu não serei jamais capturado e morto, eu o prometo em memória de meus companheiros massacrados pela intolerância, em fidelidade à minha primeira idéia, lá no quintal de minha velha casa, às meadas e minhocas que me ensinaram lições inesquecíveis. Eu juro: não me deixarei matarem. Serei realmente, como sempre fui, um suicida. Agora, agora mesmo.
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