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domingo, 18 de junho de 2006

O homem que vioru saco

(Entrevista concedida a Rodrigo de Almeida, da Editoria do caderno “Sábado”, do jornal O Povo, e publicada em 26 de abril de 1997, Fortaleza, Ceará.)


O romancista, contista e poeta Nilto Maciel, um dos mentores do extinto O Saco, fala da dura tarefa de publicar revistas no Brasil.
É isto.
"Andavam ao léu, perdidos dos caminhos, farejavam restos de virgem violada e rastros de violador desalmado. Catavam frutas podres, corriam atrás das próprias sombras, atiravam em visagens. Já não sabiam para onde seguiam nem onde se achavam. Pareciam um magote de bichos misteriosos".
Esse foi um dos momentos de alvoroço vivido numa cidadezinha do interior cearense por causa da notícia de uma donzela raptada. Uma vila isolada dos grandes centros urbanos, com tipos simplórios, desde o vigário até o prefeito, todos nivelados pelas mesmas preocupações.
Verdade? Em algum lugar, talvez sim. Principalmente na ficção de Nilto Maciel, construída na novela A Guerra da Donzela. Num jogo verbal que ora tenta obedecer às lições dos clássicos da língua portuguesa, suas principais influências, ora reproduz o estilo brasileiro e lhe enfatiza as “cambiantes dialetais”, Nilto Maciel vem tentando já há um certo tempo a sorte – e a sina – de ser romancista, contista e poeta.
Cearense de Baturité, ainda menino veio para Fortaleza, de onde saiu em 1977 direto para Brasília. Só decidiu “procurar novos rumos na vida” depois que deixou de existir o famoso O Saco, revista que fundou juntamente com Carlos Emílio Correa Lima, Jackson Sampaio e Manuel Coelho Raposo. Antes, Nilto tinha criado uma pequena revista chamada Intercâmbio, típica geração mimeógrafo.
Antes de livros como Tempos de Mula Preta e O Cabra Que Virou Bode, e elogiado por meia dúzia de bons caras da literatura cearense, como Francisco Carvalho, Adriano Espínola e José Alcides Pinto, o que é um bom dado (bio)bibliográfico, Nilto Maciel vem conseguindo manter há mais de dez edições a revista Literatura, em Brasília. Modo de dizer, pois tem o respaldo de uma cooperativa de escritores.
Sobre essas, umas e outras, Nilto Maciel conversou com o Sábado, por telefone. Poucas palavras e alguma história para contar, ele tem.

Sábado – Como e com quem você se juntou para criar a revista O Saco em 1976?
Nilto Maciel – Já havia uma discussão muito longa com várias pessoas – Carlos Emílio, eu, Airton Monte – pra gente criar alguma coisa. Uma revista, um jornal, qualquer coisa. E a gente vinha reunindo pessoas, muita gente mesmo, inclusive de música, e depois de muita conversa a gente resolveu reduzir o grupo. De 40 pra quatro. Com muitas pessoas não dava pra funcionar. Era muita discussão e não se chegava a nenhum resultado. E então chegamos os quatro pra tomar a dianteira da coisa. E aí o Raposo, como era comerciante, dono de livrarias, disse: “eu tomo a dianteira da parte comercial”.

Sábado – Mas quanto à parte editorial, o que vocês intencionavam fazer com O Saco?
Nilto – Pelo nome você vê, né, “saco de gatos”. No início nós pensávamos: vamos fazer uma coisa bem ampla, que não fosse só literatura, que não fosse só poesia. Queríamos que se incluísse o jornalismo mais cultural e também a fotografia, o teatro, desenho. A parte editorial era mais comigo, com o Carlos Emílio e com o Jackson.

Sábado – Qual era o diferencial d’O Saco, além do próprio saco?
Nilto – O formato já era um grande diferencial, né? Era um saco. Os cadernos também não vinham com grampo, porque toda revista é grampeada ou colada, como se fosse um livro. Os nossos não eram nada colados ou com grampos. Era só o saco mesmo. Um saco como um envelope, grampeado em cima, e os cadernos iam dentro. Um só pra imagem, um só para conto, um só para poesia, um só para jornalismo cultural. Havia até entrevistas. Era diferente por isso.

Sábado – Como as pessoas recebiam a revista? Vocês sabiam que tipo de receptividade havia?
Nilto – A receptividade era muito boa, e em todo o Brasil. Digo isso pela quantidade de cartas, de material que a gente recebia, muitas outras revistas de todo o Brasil e de fora também. Dos Estados Unidos, da Europa... Parecia, vista de fora, que O Saco era uma coisa muito grande. E não era, né? Era tudo muito no sacrifício. Mas, de fora, pelo aspecto gráfico, por aparecer em banca, todo mundo achava que era muita coisa. Mas não era.

Sábado – Vocês passaram por algum episódio curioso? Afinal, a época era de censura ainda...
Nilto – É, estávamos em época de censura, havia censura para alguns artigos. Havia alguns cortes, e nós fizemos um manifesto sobre a censura, coisas do tipo. O Dedé de Castro era o jornalista responsável e penou um pouco por conta disso.

Sábado – O Airton Monte me falou que vocês tiveram uma colaboração do Julio Cortazar. Como vocês chegaram nele?
Nilto – Olha, foi o seguinte. O Luiz Fernando Emediato tinha também uma revista em Belo Horizonte chamada Inéditos, e tinha com isso muito contato com o pessoal latino-americano, inclusive com o Cortazar. Ele mesmo entrou em contato e se ofereceu: “Vocês têm interesse em publicar, mesmo sendo um nome famoso?” Nós dissemos: “Se for sem cobrar...” Não tínhamos dinheiro para pagar direitos autorais, né? O Emediato disse: “Eu vou conseguir um texto dele inédito pra dar mais nome à revista sem que ele cobre nada”. E conseguiu. Mas não chegamos a ter contato direto com o Cortazar.

Sábado – Mesmo assim a revista acabou, e outras que vieram depois também. É possível determinar o que falta no nosso mercado editorial? Leitores? Profissionais?
Nilto – Eu acho que leitor não falta, não. Precisaria de mais divulgação dos meios de comunicação. No mercado é preciso muita coragem de fazer. E disposição e tempo. Tendo coragem, vontade, tem que procurar anunciante, publicidade. Sem dinheiro não adianta. Agora, dificuldade não acontece somente no Ceará. É no Brasil todo. É por falta de recursos financeiros. Apoio, publicidade. Acaba sendo mais sonho do que profissionalismo. É isso aí. A coisa funciona mais na base do sonho.

Sábado – Nossas publicações sempre carregaram alguns traços: ou são acadêmicas ou sobre literatura ou ainda sobre cultura nordestina. Estamos com uma nova publicação aqui chamada Inside Brasil, que vai num outro caminho, abordando temas políticos e econômicos. Este vai ser o caminho daqui pra frente?
Nilto – Eu acho que tem que ser eclético. Tem que ser tudo. Quanto mais eclético melhor. Quanto mais reduz, mais você tem dificuldade. O mundo hoje não suporta mais que você faça uma coisa fechada. Os tempos são outros.

Sábado – Eu queria mudar um pouco a direção da nossa conversa. Você saiu do Ceará em 77 em direção a Brasília? Por que a decisão de mudar?
Nilto – Eu vim na verdade procurar outro campo de trabalho. Eu estava me formando em Direito, havia também a literatura na minha vida. Foi por tudo. Fui procurar novos rumos na vida.

Sábado – Você chegou aí e fundou uma Cooperativa de Escritores. Como surgiu essa cooperativa?
Nilto – Foi o seguinte. Em 89, 90, eu era vice-presidente do sindicato dos escritores daqui de Brasília e, numa das reuniões da diretoria, eu propus uma comunicação semestral. E aí a coisa foi se desenvolvendo dentro do sindicato. Na época daquela cooperativa era muita gente, mas nenhuma com disposição de levar a iniciativa adiante. Depois que saí do sindicato, eu disse: “Bom, já que vocês não estão levando adiante, vou procurar outras fontes”. E comecei a me comunicar de novo com outras pessoas de todo o Brasil. Fui elaborando as idéias e recebendo sugestões. Até que em 91 nós decidimos montar um núcleo, uma cooperativa semelhante àquela, mas com oito a dez pessoas em todo o Brasil. E atualmente é uma cooperativa, que edita a revista Literatura.

Sábado – E como é que funciona essa cooperativa?
Nilto – Funciona assim: nós temos assinantes em todo o Brasil, eu estou na direção, como diretor, e estas outras pessoas, que formam a cooperativa, trabalham de uma maneira ou de outra, arranjando novos assinantes, divulgando, distribuindo.

Sábado – E quanto à escolha do formato gráfico e editorial da revista? Ela parece mais um livro...
Nilto – A gente queria exatamente isso. A idéia é que fosse justamente um livro. Eu acho que ela é muito tradicional. Não tem muitas novidades, não. Ela não tem as pretensões de cair no plano da literatura de vanguarda. É uma revista literária de um grupo, de uma cooperativa, que tenta funcionar, permanecer. Não tem nenhuma proposta nova. Eu acho até ela muito tradicional.

Sábado – A revista já está na décima primeira edição. Qual o segredo pra manter onze edições, que se não é um número excepcional, já é alguma coisa?
Nilto – É nessa base da cooperativa. Se não fosse a cooperativa, ela não vingaria. Se fosse uma pessoa só para tomar conta, ela não conseguiria sobreviver. Eu acho que muitas vezes o erro reside aí em algumas revistas alternativas: ficam na mão de uma pessoa só.

Sábado – Vamos passar pra última parte da entrevista, que é sobre a sua carreira literária. Aonde você começou a publicar? Em revistas e jornais alternativos?
Nilto – Primeiro publiquei um livro em 73, por conta própria, aí mesmo em Fortaleza. Era um livro de contos. De 73 em diante, foram muitos jornaizinhos, até o surgimento d’O Saco. Este abriu muito as portas para mim.

Sábado – Você é mais contista ou romancista?
Nilto – Eu tenho mais romances do que contos. Mas essa coisa de escrever contos, romances, novelas, poesia, vem tudo da vontade de diversificar. Eu comecei a escrever muito cedo. Desde menino eu escrevia e lia bastante. Quando menino nunca li literatura infantil. Já lia literatura adulta. Então já fui amadurecendo a leitura há muito tempo. Com 13 anos eu era um garoto que já tinha alguma leitura.

Sábado – Quais foram as suas principais influências?
Nilto – Os antigos. Machado de Assis, alguns franceses e portugueses do século passado. Foi deles que eu colhi a preocupação de escrever corretamente, muito vagarosamente, muito preocupado com a forma e com muita imaginação. Todas essas coisas aliadas. Eu prefiro a imaginação, porque o realismo é muito pobre. A cópia fiel da realidade é muito pobre. A imaginação é um vôo mais alto. Tudo o que você extrapola o normal é muito mais rico. Muito mais rico.

Sábado – No ano passado você ganhou um prêmio em Santa Catarina de dez mil reais. Mas houve o caso de um prêmio aqui em Fortaleza, de dois mil reais, que foi uma grande luta para receber. Como foi isso, afinal?
Nilto – Foi o seguinte: Me comunicaram que eu ganhei o prêmio e fiquei esperando que me enviassem o dinheiro. Até que entrei em contato com o Diogo Fontenelle, ele disse que estavam em dificuldades por que o prefeito... Bem, tinham gasto muito dinheiro para eleger o outro e não estava dando pra me passar a grana. Aí pensamos: “Vamos fazer pressão”. Então fui para Fortaleza. Passei o mês de janeiro e fevereiro, enquanto alguns amigos jornalistas entravam em contato com o Cláudio Pereira. Até que, cobrando e saindo notinha na imprensa, no dia em que eu ia viajar – a passagem marcada pras onze horas da manhã – às dez horas recebi o cheque das mãos do Cláudio Pereira. Foi em cima da hora pra correr e pegar o avião.

Sábado – Aqui no Ceará a gente sabe que muitas das iniciativas culturais acabam em encalhe. Mostras individuais, lançamentos de livros no Náutico, a maioria das obras acaba mesmo nos quintais das casas dos artistas. No tempo em que você morava aqui, como é que era? Também acontecia isso?
Nilto – Olha, você tem que acertar na mosca. Eu vou lhe dar um exemplo. O Francisco Carvalho, que tem 70 anos, ganhou o Prêmio Nestlé de Literatura há mais de dez anos e disse uma vez que pensava que, com um prêmio como esse, nacional, ele iria ficar conhecido nacionalmente, todo mundo iria querer editar os livros dele. Ledo engano. Os anos passaram e não aconteceu nada disso. Ele continua publicando os seus livros pela universidade, não vende nada. É difícil resolver isso aí.

Sábado – E com as revistas? Elas ficam encalhadas também?
Nilto – Bom, eu te digo pela revista Literatura, que eu edito agora. Ela não encalha nunca e sobram, no máximo, dez exemplares em cada edição. Mas O Saco encalhava todo. Encalhava todo. O Raposo colheu, durante anos, vários exemplares que não foram vendidos. Mas isso é coisa de muito tempo. O José de Alencar já falava disso. É uma coisa de muito tempo e de difícil solução.

Sábado – O Floriano Martins me passou quatro livros seus e eu percebi uma coisa. São quatro livros, quatro editoras. Pra você parece fácil arrumar editoras para publicar seus livros. É isso mesmo?
Nilto – Eu conheci um rapaz do Rio Grande do Sul e mandei uns originais pra ele ver. Eu nem sabia que ele era dono de uma editora. Ele disse: “Gostei muito do seu livro. Eu sou dono de uma editora e queria que você me mandasse. Ta aprovado”. Foi assim que começou. Quanto às outras, foram surgindo naturalmente.

Sábado – Mas para a maioria dos escritores as coisas não acontecem assim tão naturalmente. Quais as maiores dificuldades que um escritor pode encontrar para publicar livros?
Nilto – Acho que a grande maioria tem dificuldades. A grande maioria. Tirando os que não sabem escrever. Mas publicam livros, 90% tem dificuldade de encontrar editor. Mas sei lá, agora a coisa ta deste jeito, há um grande número de pessoas que querem ler livros do tipo Paulo Coelho. Mas há exceções. Eu citaria, por exemplo, o Assis Brasil. São poucos, mas existem alguns autores que conseguem. Agora você pega o (José) Saramago. Ele vende muito em todo o mundo, mas você não pode dizer que ele é muito melhor do que alguns escritores brasileiros, cearenses, que não vendem nada.
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