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sábado, 12 de agosto de 2006

Contos picarescos e alegóricos (Dimas Macedo)




Quem desejar conhecer a história recente da literatura cearense, terá fatalmente que conviver com a expressividade que no seu universo projeta a ficção de Nilto Maciel. Participante ativo da maioria dos movimentos literários que eclodiram no Ceará durante a aventura dos anos setenta e que tiveram como pontos culminantes a edição da revista “O Saco" e a criação do Grupo Siriará de Literatura, Nilto Maciel desde o início da sua militância revelou-se um intelectual comprometido com a transformação da palavra e com a problemática que se foi instaurando no contexto do seu discurso ficcional.

Estreou como contista, em 1974, com um pequeno volume de estórias que batizou de Itinerário, mas as suas inegáveis aptidões literárias ele somente manifestaria sete anos depois, quando, em 1981, já residente em Brasília, fez publicar, pela Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, o seu livro de contos intitulado Tempos de Mula Preta, inventário com o qual consolidaria definitivamente a sua posição de escritor, firmando-se como um dos mais expressivos ficcionistas da sua geração.

Em 1982, com a publicação de A Guerra da Donzela, Nilto Maciel revelaria suas tendências para o cultivo da longa ficção, legando-nos uma novela carregada de densa atmosfera criativa e no mais provando-nos que um ficcionista de talento forja-se não somente pela capacidade de improvisação e de apreensão do universo que busca literariamente problematizar, mas pela competência com que encaminha o fluxo da narrativa e pela habilidade com que consegue atravessar toda a elaboração de um percurso criativo alimentando um excelente nível de linguagem e um enredo sempre em processo de ascensão e gradativamente capaz de prender a atenção do leitor.

Agora, retornando ao exercício da curta ficção, Nilto Maciel nos entrega Punhalzinho Cravado de Ódio, um livro onde reúne uma série de contos, escritos, segundo revela, em diferentes épocas. São contos, assegura, “das mais variadas correntes: rurais, alegóricos, psicológicos, de atmosfera, de costumes e sócio-documentais".

Contudo, a advertência acima serve unicamente para antecipar que Punhalzinho Cravado de Ódio é um livro sem unidade temática, o que, aliás, não resulta em desproveito da apreciável qualidade dos contos que exibe. Pelo contrário, prova a versatilidade de Nilto Maciel em trabalhar assuntos aparentemente tão díspares, mas que no fundo convergem para a unificação de uma temática que se vem cristalizando como pano de fundo na elaboração da sua atividade ficcional, que é a capacidade de fundir a carnavalização do picaresco com a atmosfera do alegórico. Dentro dessa conceituação é que se enquadra, no meu entender, a maioria dos trabalhos de ficção de Nilto Maciel. Veja-se, por exemplo, a novela A Guerra da Donzela, toda ela uma obstinada tentativa de objetivar essa conceituação, bem como grande parte dos contos enfeixados em Tempos de Mula Preta.

Mas é claro que esta não é a única perspectiva de assimilação dos contos de Nilto Maciel, da mesma forma que a classificação por ele mesmo proposta não esgota o enquadramento dos universos faccionais abordados. O conto intitulado “Insensatez”, por exemplo, podia muito bem ser classificado como um conto de configuração urbana, assim como existem os contos que o autor reconhece como de procedência rural.

Esta variedade de temas e, principalmente, de técnicas narrativas, pelo que se pode depreender de uma paciente leitura do conjunto de contos reunidos em Punhalzinho Cravado de Ódio, emerge da inconformação do autor de não mais aceitar as seduções da estética literária tradicional, bem como da consciência de que é preciso reinventar a carpintaria da ficção, sob pena do processo de criação converter-se em técnica de reportagem.

Em Punhalzinho Cravado de Ódio existem contos de excelente concepção, como é o caso de “A Arca”, “O Desafio de Facundo”, “O Fogo e a Luz”, “Quimera”, “Rede de Cobras” e “Teoria da Desfiadura”, isto sem falar na estória que dá título ao volume, bem como no interessantíssimo “Tadeu e a Mariposa”, este último um conto de permanente interesse para o leitor, quer pela originalidade do enredo que ostenta, quer pela aura de criatividade que o reveste.

Punhalzinho Cravado de Ódio é um livro que ao leitor reserva agradáveis surpresas. A rigor, não existe uma ordem de leitura que realmente corresponda à seqüência dos contos. No entanto, tenho para mim que a melhor opção de leitura seria aquela que começasse pelo último texto do livro. Assim, o leitor seria mais facilmente arrastado por todo o percurso do volume e, de início, evitaria a difícil travessia que começa com a descoberta de “A Lenda de um Reizinho - Capítulo Exótico” e termina com o último parágrafo do conto “Esses Abraçadores da Morte”.

No entanto, apesar dessa recomendação, é preciso igualmente que se mencione que a estória que abre o volume é uma página de refinada sensibilidade, assim como belíssimo é o conto intitulado “A Desilusão de Jonathan Swift”, o segundo que ali aparece.

Por fim, registre-se que com Punhalzinho Cravado de Ódio Nilto Maciel reencontra-se com o melhor da sua produção, quer pela comprovação de que é realmente mestre na arte de contar estórias inesperadamente fabulosas, quer pela sua obstinação de permanecer fiel a uma temática e a uma técnica literária particularíssimas. No mais, diga-se do proveito que pode auferir o leitor com a assimilação da sua atmosfera criativa, bem como com o conhecimento da sua aventura picaresca e do seu discurso transparentemente alegórico e incontestavelmente elucidativo.

(Prefácio de Punhalzinho Cravado de Ódio, reescrito sob o título “Punhalzinho Cravado de Ódio” e publicado no livro Crítica Imperfeita, UFC, Fortaleza, 2001, págs. 178/179)
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