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domingo, 29 de outubro de 2006

Da noite para o dia (Nilto Maciel)



Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a idéia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa, grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.

César sonhava com a glória literária. Ser membro da Academia, escritor de fama, ganhador do Nobel. Já meu sonho se contentava com as migalhas da simples publicação. Eu não tinha vocação literária, embora rabiscasse versos vez por outra. Aprazia-me mesmo era desenhar. Daí a capa do futuro livro de César e algumas ilustrações ao texto.

Iríamos trabalhar juntos sempre: ele como escritor de novelas, eu como ilustrador de seus livros. E nunca ele aceitaria outro ilustrador, nem eu ilustraria livro de outro escritor. Pacto de sangue, de morte, de amizade eterna.

Planejamos publicar a primeira novela. Cinquenta mil exemplares na primeira edição. Ele havia sonhado com cem mil, até que o convenci a ser mais modesto. Iríamos ficar famosos da noite para o dia: ele como escritor, eu como ilustrador. Lidos e vistos em todo o Brasil. E depois em todo o mundo. Inclusive na China. Falaríamos com Mao Tse-tung. A juventude chinesa precisava de ler textos mais do coração e não só o livrinho vermelho.

Enviamos cópias para algumas editoras. As respostas vieram desalentadoras: “livro pouco comercial”, dizia uma; “muitas obras no prelo nos impedem de dar publicação à sua novela”, esclarecia outra; “não estamos no momento publicando novelas”, explicava uma terceira; “livro não aprovado pelo nosso Conselho de Leitores”, resumia uma quarta. E outras do mesmo teor.

Algumas editoras nem sequer deram resposta. Fizemos então novos planos maravilhosos. Não iríamos precisar das editoras. Pouparíamos. Deixaríamos de fumar, beber, merendar, ir ao cinema, etc. César iria trabalhar e depositaria a maior parte do ordenado na caderneta. Meu pai não me deixava trabalhar, mas, em compensação, eu exigiria mesada mais gorda. Dela tiraria apenas o suficiente para os gastos mais necessários e depositaria o restante na poupança. Quando já tivéssemos alguns milhões, mandaríamos publicar a novela numa gráfica qualquer. Venderíamos os livros nas escolas, nos cinemas, nas ruas, lojas, repartições públicas, nos bares. Viajaríamos pelo interior. Com o dinheiro da venda mandaríamos publicar o segundo livro. Mas quando teríamos os milhões suficientes para pagar a primeira impressão? A esta pergunta perdemos o entusiasmo.

Concluídos os estudos secundários, César deixou de estudar e arranjou emprego. Não para juntar dinheiro, mas para sobreviver. Seu pai mergulhava cada vez mais na pobreza. E não falamos mais na novela. Nossas relações pouco a pouco iam perdendo o calor, nossos encontros se distanciando no tempo. E, quando nos víamos por acaso, apenas nos cumprimentávamos.

Esqueci logo os desenhos, as ilustrações, os sonhos. E fui estudar Direito.

Um ano depois meu pai morreu. Estranhamente assassinado. Crime horrível – latrocínio. Morto e roubado. Encontraram seu corpo numa valeta a poucos quilômetros do centro da cidade. Um tiro no crânio. E o carro estacionado à margem da estrada. Nenhum vestígio do assassino.

Meu pai nunca teve inimigos, dava-se bem com todo mundo e quase toda a cidade o conhecia. Nós, os filhos, estudávamos nos melhores colégios. Minha mãe o adorava. A polícia ficou tonta. Não sabia a quem atribuir o crime. Nenhum indício, nenhum suspeito.

No dia de sua morte havia sacado uma grande soma em dinheiro ao banco, como sempre fazia. E seus negócios ele mesmo os resolvia. Deixava o carro estacionado nas proximidades do banco, levava uma pasta, um revólver e só. Não queria guarda-costas.

A polícia concluiu finalmente que o assassino só podia ser um assaltante comum. Foram então presos todos os ladrões e suspeitos de terem cometido crimes contra o patrimônio. A nenhum deles, porém, foi possível imputar o latrocínio.

Folheei a novela e por um bom tempo me deixei a cismar. Pensei no meu passado, em César, e quase não consegui dormir. E decidi que hoje procuraria saber onde vivia César. Queria recordar com ele todos os nossos sonhos, todos os nossos sofrimentos, ele por ter tido suas ilusões tão duramente mortas, eu por ter perdido meu pai de maneira tão bárbara e misteriosa. Como pudemos nos esquecer tão depressa, apesar daquela amizade quase apaixonada que nutríamos um pelo outro? Como somos fracos, débeis, inconstantes!

Onde, porém, eu poderia encontrá-lo? Detrás de um balcão de loja? Na cozinha de um restaurante? Ou teria conseguido realizar seus sonhos literários, pelo menos os mais modestos? Ou teria ido embora para bem longe? Talvez até estivesse morto.

Não, não adiantava fazer suposições. Mais fácil procurar seu nome na lista telefônica. Se não estivesse tão mal, certamente teria um telefone. Tentei lembrar-me de seu nome completo. Lamentei mais uma vez a fragilidade do coração humano. Como pude esquecer tão facilmente o nome de meu melhor amigo? Ainda bem que a novela se encontrava comigo, e, com toda certeza, nela estaria o nome inteiro, um sobrenome pelo menos. Corri os olhos e li: César Augusto dos Reis, no alto da capa.

Hoje disquei o número e atendeu uma voz grossa e autoritária. “Quero falar com o novelista César Augusto dos Reis”. A voz do outro lado se mostrou aborrecida: “Não existe nenhum novelista aqui. Quer deixar de brincadeiras, meu senhor.” Apresentei-me. Ele se fez de esquecido ou de fato não se lembrava mais de mim. Depois se disse surpreso: “Não sabia que você ainda era gente”. Conversamos mais. Quis saber de minha vida. “Sou advogado. E você?” Falou em barzinho, dificuldades, “aturando esses bêbados dia e noite”. Pedi o endereço.

O barzinho chama-se “Restaurant Carnivorous”, serve pratos da cozinha internacional, recebe a fina-flor da sociedade e é irmão de outros dois e de um prédio de doze andares.

César mandou dizer por um moleque de recados que não podia receber ninguém. Em um minuto deveria sair para compromisso inadiável. Não dei ouvidos ao recado e entrei no escritório. E só saí de lá uma hora depois.

Falamos da morte de meu pai, de comércio, de literatura e artes plásticas, do passado, de nossos sonhos, mil coisas, tudo de forma desordenada, como se quiséssemos falar todas as palavras ao mesmo tempo. Contou-me sua história: antes de adquirir o primeiro barzinho, trabalhou como garçom, copeiro e cozinheiro. O barzinho rendia alguma coisa, até se transformar num bar de verdade. O bar virou restaurante. “Tudo porque sou muito controlado e trabalhador. Não ando esbanjando dinheiro”.

Surpreendi-me diante de tanta riqueza e fui para casa desconfiado não sei de quê. E todo o passado voltou à tona, aos borbotões, feito vômito. Relembrei todas as nossas conversas, todos os sonhos, todos os projetos, a novela, tudo. E me interroguei com mil perguntas: por que César não publicou o livro, não virou o escritor que desejava ser, se tem tanto dinheiro? E se havia dito numa de nossas últimas conversas que nada o impediria de se transformar num grande homem, famoso, reconhecido por todos! Como um barzinho podia ter se transformado num restaurante daqueles em tão pouco tempo?

Não durou muito aquele vômito e voltei ao restaurante. Da porta gritei: “César, você matou o meu pai”. Ele quis explodir, gritar, correr, agredir. Apontei-lhe o revólver e ele se rendeu.
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