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quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Inventário de Quinca Manco (Nilto Maciel)


Como se não lhe fosse possível entender que um dia o silêncio se apossa para sempre de mudos e tudos, Chico Maneta deu bom-dia, arrastou um tamborete para mais perto de Quinca Manco, sentou-se e pôs-se a recontar casos tão antigos e esquecidos que quem os ouvisse certamente pensaria tratarem-se de sonhos ou lendas.

Coberto de moscas, o corpo magro e quase nu do velho amigo parecia dormir, estirado na rede suja, sem varandas, tranças ou trancelins, e de punhos e mamucabas rotas. 

De repente, porém, o vento escancarou as portas e fez o visitante levar as mão trêmulas de dedos endurecidos ao nariz. Uma catinga dos diabos circunvolou e atirou Chico Maneta – velho galo de asas caídas – em direção à porta da rua, para cantar rouco:

– O Quinca Manco está podre!

Daí a pouco, a derradeira agonia de Joaquim Mendes Umbuzeiro principiava. Encheu-se a casa de vizinhos, curiosos e autoridades, lenços nas ventas, mãos estendidas para os pêsames impossíveis, olhos revirados para a poeira – pó de ouro – e o mofo-mármore.

Só no mundo, sem parentes nem aderentes, por via da morte ou do progresso que os chamara para bem longe, às autoridades competiu tratar-lhe do pronto enterro e, sobretudo, inventariar-lhe os bens.

Enquanto o corpo seguia para os confins da terra, na casa permaneciam o padre, o prefeito, o delegado, o juiz, o farmacêutico e o orador perpétuo da cidade.

O esqueleto do defunto partiu na própria rede onde o encontrou Chico Maneta, rede que lhe servia de cama desde a viuvez e de mundo desde algum tempo. Conduziram-no pelas ruas até o cemitério dois eméritos cachaceiros, aos tropicões, embalados pelo blim-blão do sino católico.

Ao cabo de algumas horas, constataram os inventariantes haver Quinca Manco deixado para ninguém, além da casa onde viveu desde o único e indissolúvel matrimônio com Dona Maria Galdina Umbuzeiro, os seguintes bens: três trôpegos tamboretes, que serviam de assento aos habituais e incômodos fantasmas, inclusive Chico Maneta, falecido há doze anos e que apenas quatro vezes o visitou durante o decênio, com os quais costumava conversar sobre fatos nunca ocorridos; um cabide sem roupas pregado numa das paredes do quarto de dormir e onde certa noite pensou pendurar o prefeito; uma ceroula encardida e em frangalhos, usada no dia do casamento; um terno de linho branco que só a marretadas se dobrava e vestido apenas nos dias mais festivos, como o da padroeira, quando da queda do Estado Novo e por ocasião de um eclipse; uma camisa de mangas esfiapadas e colarinho esburacado, companheira eterna do citado terno; uma provável antiga gravata, no interior da qual foram encontrados três baratas e um rato; um par de sapatos seis vezes furados cada um, sem enfias, dentro dos quais duas meias impregnadas do mais fétido chulé e também furadas, cada uma, cinco vezes na ponta destinada a suportar os dedos, todos jogados aos pés de um dos tamboretes e que constituíam a indumentária do velho desde 1945; um cachimbo de madrepérola há muito não pitado, embora o trouxesse constantemente à boca, exceto quando dormia ou se enfurecia (nessas ocasiões, pendurava-o sobre a orelha esquerda e, passada a raiva, punha-se a acusar aquele a quem o enfurecera de o ter feito engolir o cachimbo); uma espreguiçadeira cujo encosto de pano imitava uma máscara humana e na qual, antes de se dedicar à rede definitivamente, passava os dias, tomando café, fumando cachimbo e resmungando; duas cadeiras de balanço então servindo de picadeiro às aranhas, móveis em que sentaram-se entre outras personalidades e pessoas de seu agrado o deputado Crisântemo Cansanção, o bispo D. José Tupiniquim e a formosíssima Rosana Macieira, todos falecidos; uma mesinha de madeira sobre a qual jazia um rádio descomunal e mudo desde a novela O Direito de Nascer, mudez que apressou a morte de Dona Maria Galdina e rádio que assustou a cidade quando de sua triunfal chegada e onde, depois de imprestável, se abrigavam o gato Mimi e a cadela Laica, em conúbio pecaminoso aos olhos da mulher de Quinca; uma moldura em que se viam em fotografias separadas a figura dele e da esposa, à época do consórcio (1902); um quadro ovóide representando meio corpo de Jesus Cristo com o coração exposto e sangrando; trinta e quatro pregos, sendo dois caibrais, enfiados nas paredes ao longo de toda a casa e em que se dependuravam cascas de laranja, cordões e objetos não identificados; um relógio de repetição que parou exatamente às três horas do dia 1º de abril de 1958, quando o morto enviuvou; outra mesa que antigamente serviu de mesa de jantar, medindo cinco por dois metros e sobre a qual um chapéu-de-chile emborcado abrigava uma catita mumificada, aparentando ter morrido às gargalhadas; uma máquina de costura marca Progresso, onde D. Maria costumava engendrar calções para os filhos; uma bengala lisa e rija que o velho usou durante mais de setenta anos e com a qual chegou a aleijar quatro cachorros, matar cinco gatos e esbordoar sete desafetos políticos, entre eles o farmacêutico, fato ocorrido nas eleições de 1950; uma peneira por cujos furos já passavam até jerimuns; uma quartinha cheia de água desde a chuva que caiu na noite de 21 de abril de 1969; um pote onde foram encontrados restos de um cururu, uma moeda de tostão, cabelos brancos, duas presilhas e uma dentadura superior, objeto que o velho disse ter perdido numa caçada, após morder violentamente o focinho de uma onça que saíra aos gritos, levando-lhe os dentes nela cravados; um relho com cabo de madeira, célebre nas redondezas por ter sido com ele que o velho dera uma surra em Lampião; uma lamparina sem pavio, utensílio certa vez confundido com um gato maracajá e por isso furado de bala; uma gamela usada como prato e na qual se viam ainda restos de arroz; um caçuá onde, no momento em que foi encontrado pelo padre, no meio do matagal que tomava conta do quintal, ressonava um gato cego, desdentado e mudo, de cerca de 20 anos de idade; um surrão esfiapado, uma cangalha, um balaio, uma gaiola e um pilão.

Afora esses inestimáveis bens, as autoridades encontraram ainda, não sem muitas surpresas e emoções, um velho e gigantesco baú preto, mais parecido com um caixão mortuário de rei. No seu interior foram achados um pião de brejaúna, sem bico, feito pelo pai de Quinca no ano de 1885; três colheres de pau; treze bilros; um alfinete enferrujado enfiado na ponta de um pauzinho, possivelmente restos do cata-vento que Pedro, o primogênito da família, fabricou em 1915; quatro vestidos; uma calça íntima; dois porta-seios; três saias; cinco blusas e cinco combinações que pertenceram à finada; um exemplar corroído pelas traças da História de Carlos Magno e os 12 Pares de França, entre cujas páginas pregara-se um pedaço de papel em que estava escrito em boa letra de mão o seguinte, para o qual as autoridades não souberam dar explicação: “Precisa-se de uma escrava moça, bonita figura, robusta, sadia e carinhosa, que não faça questão de ser examinada, para ama-seca, arrumadeira, jardineira, engomadeira, costureira e cozinheira, que durma no aluguel, em casa de poica família séria”; um calendário de doze folhas, ilustradas com mulheres seminuas, referente ao ano de 1946; uma fotografia do pai de Quinca datada de 1898; exemplares diversos do Jornal do Commercio, de O País e da Revista da Semana; um pequeníssimo recorte de jornal que trazia o texto seguinte:
“Aos Monarchistas
Ricos pratos de porcellana, para
adorno de sala, com os retratos,
do ex-Imperador e Imperatriz,
recebeu o
ELDORADO
Largo do C. Santo n. 9";
e, finalmente, uma cédula de cem cruzeiros, três de cinqüenta, sete de dez, vinte e uma de cinco, cento e trinta e quatro de um, sete moedas de cinqüenta centavos, treze de vinte, quarenta e duas de dez, de hoje; e mais quatro moedas de dez centavos antigos, oito cédulas de mil réis, quatorze moedas de tostão, duas patacas, um patacão, três cruzados e seis xenxéns.

Só não foi encontrado, porque jazia dentro de um cofre enterrado no quintal, um romance inédito escrito por Antonio Mendes Umbuzeiro, pai de Quinca Manco, intitulado Inventário e tido como o marco da literatura fantástica brasileira, concluído em 1829, ano do nascimento de José de Alencar.
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