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domingo, 29 de outubro de 2006

Mitos nordestinos além-fronteiras (Nara Antunes)


Cearense residindo em Brasília, depois de ter publicado em edições mais restritas Itinerário (contos) e Tempos de Mula Preta (contos), além de ter participado de várias obras coletivas. Nilto Maciel lança agora uma nova obra – A Guerra da Donzela (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 70 págs.). Nesta diversidade de espaços extratextuais, talvez se espelhe um pouco a maior dimensão textual que esta pequena (apenas em tamanho) novela já alcança.

De fato, utilizando-se de uma temática carregada de valores e mitos tipicamente nordestinos, e recriando literariamente uma linguagem também marcadamente regional, A Guerra da Donzela, no entanto, ultrapassa de muito certas limitações da literatura regionalista, resvalando tangencialmente no fantástico para terminar atingindo uma literatura quase mítica.

A novela narra a agitação vivida numa cidadezinha do interior do Ceará, onde corre a notícia – nunca confirmada ou desmentida – que uma donzela havia sido raptada. Os habitantes do lugarejo se organizam numa verdadeira marcha bélico-religiosa de perseguição ao raptor e sua vítima. Mas esta marcha se transforma, paulatinamente, numa batalha contra os mitos que povoam o inconsciente coletivo dos membros do lugarejo. Ao invés de travar combate com o raptor, os defensores da honra da donzela terminam por lutar contra enormes mulas pretas, gigantescos pássaros e seus descomunais ovos, um sapo cururu capaz de, numa única mijada, inundar tudo à sua volta, índios pintados em tintas de jenipapo e recobertos de penas e até um gigante chamado Gorjala... Pelo menos, esta é a versão posterior que fornece um dos integrantes da marcha, ao retornar enlouquecido à cidade.

O inesperado na narrativa de Nilto não é, como pode parecer, este clima de alucinação coletiva que envolve os personagens quando se defrontam com um imaginário perigo, afinal de contas, o medo costuma mesmo provocar a visão de fantasmas... O inesperado, por se tratar de um autor praticamente iniciante, é a maneira sutil com que Nilto maneja seu discurso, incorporando a ele expressões nordestinas, sem, contudo, copiá-las – ao contrário, enriquecendo-as com conotações surpreendentes –, e a técnica de metamorfose progressiva que a novela sofre, passando do documentário de situações verossímeis, das primeiras páginas, à completa fantasia mítica das páginas finais. Se no princípio tudo levava a crer estarmos diante de mais uma novela de caráter costumbrista, após a metamorfose torna-se difícil e ambígua qualquer classificação, pois A Guerra da Donzela não é uma novela exclusivamente costumbrista, nem fantástica, nem psicológica, nem mítica, mas tudo isto de uma vez.

A melhor maneira de caracterizá-la talvez seja defini-la como uma novela acerca do poder da palavra sobre a realidade. De fato, desde o início, quando ainda parecia limitar-se a contar realisticamente um fato verossímil, já o narrador começava a advertir sobre o poder da linguagem: "Quem, todavia, poderá conter as palavras?" O discurso, que “fazia tremer nas prateleiras os frascos" no consultório do dentista, "é como a cárie que corrói a dentadura".

Como toda a trama de A Guerra da Donzela baseia-se exclusivamente na palavra – ninguém testemunhou o rapto da moça, ou sequer sabe quem ela seja, apenas se ouviu falar do caso –, a própria novela é um exemplo vivo deste processo corrosivo levado a uma caricaturesca situação extrema. É bastante sintomático, sob este ponto de vista, que a alucinação coletiva só pára quando “foi nomeado um interventor para a cidade, cujo primeiro ato foi proibir que certas palavras, como sombra, guerra, batalha, regimento, donzela, rapto, gruta, monstro, todas, enfim, que relembrassem o passado. O povo, por muito tempo, viveu em paz e esquecido da língua”.

Naturalmente que, como toda obra literária que se preze, esta não é a única leitura contida em A Guerra da Donzela. Poder-se-ia também ler a novela de um ponto de vista psicológico, isto é, como uma espécie de parábola explicativa das razões do fanatismo moral e religioso dos nordestinos; ou até sob uma perspectiva político-social, quer como uma denúncia da manipulação que o discurso dos líderes exerce sobre a ação do povo, quer, dentro de uma generalização mais ampla, como uma recriação literária do último período da vida brasileira, também ele precedido de uma marcha cívico-religiosa que depois se transformou numa batalha bélica contra ameaçadores monstros...

(Jornal de Brasília, 30/11/1982, e Suplemento Literário Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 22/1/1983)
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