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sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Prefácio (José Lemos Monteiro)



Foi com Tempos de Mula Preta que Nilto Maciel revelou suas tendências literárias, firmando-se como um escritor consciente dos recursos que a palavra oferece e dela auferindo toda a força e magia em contos que se nivelam no gênero ao que de melhor se tem publicado atualmente no Brasil. Seria, pois, previsível que logo o autor surgisse com novas experiências, no sentido de ampliar os traços de seu discurso, definindo melhor suas orientações ou princípios estéticos.

Agora, passando do conto para a novela, Nilto Maciel dá continuidade a seu trabalho com este livro A Guerra da Donzela, uma narrativa tão bem construída que será difícil apontar-lhe defeitos em qualquer nível de leitura.

Quanto ao plano da ação, tudo giram em torno de um pretenso rapto, sem desvios ou digressões, quase transmitindo a feição de uma narrativa monocrônica, com poucas características do romance e bastantes traços do conto e da novela.

Mas, se de um lado os elementos formais conduzem a esta interpretação, é necessário observar que a narrativa esconde múltiplos significados captáveis através de uma análise que leve em conta, acima de tudo, os aspectos sociais conectados às raízes inconscientes dos preconceitos e tabus.

Com efeito, o alvoroço vivido numa cidadezinha do interior cearense por causa da notícia de uma donzela raptada aos poucos faz vir à tona uma série de motivos arraigados no inconsciente coletivo, simbolizados por sucessivas visões míticas. São formas agigantadas e estranhas que entretanto não chegam a instaurar a atmosfera do fantástico, posto que devam ser compreendidas a partir de um contexto até bem mais rico.

Na realidade, o aparecimento do gigante Gorjala, da enorme burra preta, do ovão do tamanho de uma jaca, do cururuzão, do porcão preto e de outros monstros não se deve apenas à insanidade ou estado alucinógeno das personagens envolvidas, senão que deriva de violentas marcas de repressão sexual geradoras de mitos ou arquétipos. Será desnecessário apelar para as teorias psicanalíticas freudianas, tão óbvias parecem ser as conotações que os símbolos sugerem, principalmente porque sempre associados ao medo e à repulsa.

Este é, por conseguinte, um dos possíveis ângulos para a leitura do livro, daí advindo uma gama complexa de valores, aptos a formar um contorno em que se possa conhecer a fundo determinados componentes éticos talvez em fase de desagregação. Assim sendo, A Guerra da Donzela assume um teor de documentário, resguardando do impacto causado pela penetração inevitável de outros padrões culturais um quadro moral definidor do comportamento do homem cearense e, por extensão, do brasileiro.

De fato, a descrição da vida dos habitantes de Palma, nos arredores da serra de Baturité, é em tudo semelhante à das populações de qualquer vila isolada dos grandes centros urbanos. Os tipos são reiteradamente simplórios, desde o vigário até o prefeito, todos nivelados pelas mesmas preocupações. E disso se aproveita o narrador para compor uma trama leve, cheia de lances irônicos que provocam o riso do leitor.

Aliás, este é um dos aspectos que demonstram sobejamente o poder de observação e de perspicácia do autor. As figuras humanas são descritas, embora caricatamente, com tamanha fidelidade, que de imediato remetem a tipos identificados pelos mesmos traços. Há inclusive que considerar, em termos de tipologia narrativa, uma tendência muito acentuada para a caracterização de tipos, o que acarreta uma análise de costumes, ficando em plano secundário os movimentos que dariam intensidade à ação, esta geralmente mais um recurso para a fixação dos pormenores singularizantes dos tipos, ressaltando o gosto pelo caricaturesco ou cômico.

Tal se observa a partir do fio central da narrativa, a mobilização de voluntários para a defesa da honra ultrajada. Os lances de comicidade perpassam a ação inteira, marcada pela atitude quixotesca da declaração de uma guerra ilusória a que, revestidos da maior solenidade e medo, todos se arremetem decididos.

Sob outro ângulo, o narrador explora o sentimento de religiosidade popular e a guerra se torna uma espécie de cruzada, um misto de procissão e batalhão. O fanatismo se converte assim em um dado a mais no quadro de costumes delineado, devendo-se constituir um índice capaz de conduzir a leitura a inúmeras conotações, algumas sugeridas de modo bastante sutil.
Entretanto, tudo isto só funciona na novela de Nilto Maciel em virtude de um domínio invejável da técnica de narrar. Sem pretender realizar experiências vanguardistas, situa-se nos moldes tradicionais da narrativa linear, renovando-a por uma linguagem que acrescenta em muito a nota de autenticidade e espontaneidade. Este é o elemento fundamental de seu discurso, delimitado pelo domínio dos procedimentos estilísticos e enriquecido enormemente com o acúmulo de expressões regionalistas.

É difícil encontrar nos dias atuais um escritor tão consciente desses recursos. Nilto Maciel percebeu a capacidade estética que determinados torneios fraseológicos ou vocábulos de uso popular estão aptos a produzir e passou a fazer uso deles de forma surpreendente, muitas vezes inserindo-os no próprio discurso do narrador, num perfeito entrosamento com as personagens descritas.

E, além da familiaridade com o dialeto cearense, resulta o efeito do tratamento dado através da deformação intencional das impressões sensoriais, o que é obtido por meio de hipérboles constantes, enumerações caóticas e insistentes visualizações ou cruzamento simultâneo de sensações. Afinal, ele sempre encontra a expressão adequada para gerar as imagens mentais que o leitor irá reproduzir.

A título de ilustração, eis alguns exemplos desse jogo com os recursos que a linguagem fornece a quem lhe souber desvendar os segredos:
“Um cheiro de vela, hóstia, vinho e alma inundava tudo”.
“Um galo retardatário cantava galinhas no quintal”.
”A empregada entrou abraçada a pães e notícias quentes”.
“O Juiz derramava café na xícara e latim na mesa”.
“Ouviu a risada dos urubus de volta à carniça”.
“Um gato afiava as unhas numa bananeira”.

Mas não é bem lícito tirar do leitor o prazer de descobrir e analisar os efeitos dos procedimentos que organizam o discurso literário de Nilto Maciel. Por isso, os pontos aqui destacados nem de longe acenam para o que realmente pode encerrar esta sua narrativa tão simples e tão rica. São menos um esforço de penetração do que um convite ao leitor para conhecer um universo cheio de sutilezas e de fantasias, um universo em que as palavras revelam sempre mais do que parecem transmitir.

(Prefácio de A Guerra da Donzela, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS, 1982)
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