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segunda-feira, 13 de novembro de 2006

A estética de um ritual (Batista de Lima)


Estaca Zero, de Nilto Maciel, é um ritual. Só isso. Nada mais seria necessário dizer, após a leitura das 66 páginas desse romance. Ou como ele próprio diz, pela boca do personagem Cesário Valverde: "um bom esboço de romance" (pág. 65), onde "tudo é obra de fantasmas" (idem), e também onde "se resiste à custa de palavras" (66).

Por falar em personagem, não se sabe em torno de quem gravita a narrativa. De Cesário, que encabeça os principais aconteceres em primeira pessoa e discurso indireto? Da favela "Estaca Zero”, que é a síntese dos problemas sociais e periféricos de qualquer metrópole brasileira? Ou do próprio fazer do romance, da metodologia do narrar? Tem-se, pois, três opções a seguir, como três saídas labirínticas que partem de um eixo central que é o enredo engendrado pelo autor.
Se o leitor seguir as pegadas de Cesário Valverde, que aparentemente mostra uma trilha mais clara e larga, pode se perder no delírio do personagem. Pode se envolver com um universo fantasmagórico que, parecendo uma clareira no meio de uma floresta, é uma miragem onde qualquer um pode ser tragado pelo ritual de seres natimortos. O próprio Valverde é o símbolo da decadência, sem escapatória, vítima do determinismo que tanto empolgou os autores naturalistas. Não quer dizer que Estaca Zero seja um romance de tese. O autor apenas prepara o ritual, mas não o realiza, deixando essa função a cargo do leitor. E esse fenômeno fica por conta da terceira opção, qual seja, a de romancear um fato, uma situação, uma atmosfera mutante. Seguir por esse prisma é tentar fazer do texto um meta-romance. É o romance do fazer-se romance. Pode? Pode. Pelo menos é o que se conclui através das interrupções que faz o autor, para questionar seu fazer narrativo. E nisso ele se sai bem. Como se sai bem também na segunda alternativa de entendimento que pode ser buscada pelo leitor, que é o social. O surgimento da favela nos mesmos moldes daquela de Aluísio Azevedo em O Cortiço. Só que nessa, a época é a atual e a localização espacial não é o Rio de Janeiro, e sim Fortaleza. Os ingredientes são os mesmos. Aliás, lembra muito o episódio da “Favela da José Bastos", que há alguns anos atrás irrompeu num subúrbio da capital cearense. Talvez seja a forma romanceada do episódio, já que o mesmo apareceu em forma de poesia, através de Fala Favela de Adriano Spínola e teatralizada posteriormente pelo Grupo Grita.

É esse lado social que leva Nilto Maciel a se aproximar do romance de tese, da denúncia. Mas ele não desliza no panfletário. Ele tergiversa e termina desembocando no lado mágico, delirante! onírico, que sempre se apresenta em obras suas. Quem leu Tempos de Mula Preta (contos, 1981) ou A Guerra da Donzela (novela, 1982), sabe que esse cearense, radicado atualmente em Brasília, tem mania de rechear suas histórias de lances sobrenaturais, fantásticos. É uma vocação enorme para a novela. Ele diz que está fazendo um romance, o personagem também diz, e o leitor se delicie com uma gostosa novela.

Aliás, quem conhece bem a vida de Lima Barreto e dos seus personagens reais e irreais, termina encontrando verossimilhanças no destino dos personagens de Estaca Zero; bem como os sintomas da linguagem forense por parte do autor.

A irmã Josefina, de Cesário Valverde, é igualmente Evangelina, a irmã devotada de Lima Barreto, que cuidou dos seus males e da loucura do pai. O próprio Valverde tem algo de Policarpo Quaresma ou do próprio Lima Barreto.

Outro aspecto relevante nessa obra de Nilto Maciel é a presença da magia indígena. O seu conhecimento do ritual dos silvícolas brasileiros, dá a entender que o autor é um estudioso, um pesquisador do assunto.

Mas o interessante mesmo é que esse jogo de mudanças do real para o irreal, do narrativo para o dissertativo, faz com que o autor, de repente, pare a narrativa e faça um apelo ao leitor para que esqueça a forma e se preocupe com o fundo, com a mensagem. E de novo volta às fantasias, aos sonhos esquisitos, às visões de Cesário. E assim, vai nos envolvendo um clima de levitação que ondula entre sonho e realidade. Até há um toque de anarquismo no manuseio dos personagens e no trato do texto. Lá pelas tantas o autor se questiona: (pág. 25):

“Desde o princípio desta narrativa, vem me importunando uma questão literária – como pode o memorialista se livrar do presente ou narrar o passado sem qualquer envolvimento com o tempo presente?”

Ora, o tempo presente é a preocupação principal de Nilto Maciel. Sua obra compromete-se com o cotidiano. A favela "Estaca Zero”, com seus problemas, é sintoma de um mal muito maior, mais abrangente e que se agiganta no Brasil. É o favelado, o produto do êxodo rural. É o problema da terra. É muita terra para poucos e falta de terra para muitos. Esse desnível social grita pela Reforma Agrária. Pois é ela que vai dar condições de fixar o homem ao campo. Que vai evitar o inchamento das cidades com o surgimento de mais favelas, de mais e mais “Estacas Zero”.

(Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 30/8/1987)