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sexta-feira, 29 de junho de 2007

Melodias em uníssono (Valéria Nogueira Eik)
























O vento corre pelo canavial provocando um ruído muito parecido com chuva. Olho para a folhagem escura que se agita sob a ventania e desejo sentir felicidade. É bom estar aqui, na quietude do campo, embora o silêncio traga desassossego à minha alma tão acostumada ao movimento frenético da cidade. As lembranças chegam e se deitam aos meus pés criando uma atmosfera irreal, onde passado e presente cantam em uníssono a melodia das horas.
Onde estão todos eles? Vejo, por entre as brumas do tempo, minha avó sorrindo e chamando para o almoço. Sinto o cheiro do carneiro assado, do arroz de visita, muito branco e brilhante. Ouço as risadas da família. E naquele momento tudo é contentamento dentro da casa em festa. O mugido do gado, atrás da mata, espanta as suaves visões e reforça a sensação de nostalgia. Os avós não mais fazem parte da vida. Seguiram serenamente o ritmo do desgaste e partiram. Sinto uma vontade dolorida de abraçar minha avó. Somente agora estou pronta para entender a grandiosidade dos seus gestos e das suas poucas falas. O desencontro natural das gerações impossibilitou as longas conversas que teriam facilitado escolhas. Mas é inútil querer segurar o tempo que desliza através das noites e traz mais um dia, mais um dia, mais um dia... Aqui, neste pedaço de terra vermelha, meus passos se confundem com os passos da avó. E admirada percebo que meus temores são os mesmos temores que habitaram o coração daquela mulher. Minhas alegrias, tão tenras, apenas pequenos instantes de prazer, são as mesmas alegrias da grande mãe, que nunca chegaram a se tornar felicidade. Constato que a vida é curta e que as preocupações são tolas, pois o destino segue inexorável. Sinto saudade do tempo que se foi. Ouço a voz da minha avó, da minha mãe, das tias, e a minha própria voz cantando baixinho a canção que soluça em meio à saudade. “Lampião de gás, lampião de gás, quanta saudade você me traz”. Entôo a música vezes sem fim, e derramo o choro da criança que habita meu corpo de mulher. Vejo o entardecer caminhar pelo céu e pincelar de vermelho o horizonte. Enxergo a primeira estrela e os primeiros vaga-lumes. Penetro na escuridão da noite e reverencio a lua. Risco, no imaginário, um grande círculo e chamo por elas. Uma a uma, de todos os cantos do tempo, as mulheres da família retornam e tomam seus lugares na roda. E cantamos, em uníssono, a melodia do único reencontro possível.
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