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sexta-feira, 22 de junho de 2007

O menino e o poeta (Nilze Costa e Silva)


(Dimas Macedo)



Querer bem à poesia de um autor. Quase não se fala assim. Pois eu digo que quero muito bem à poesia do Dimas Macedo. Principalmente à poesia do seu lado menino, retratado inicialmente no seu livro “A Distância de Todas as Coisas”, em que traz explícito o desejo de recuperar a criança perdida. Nos ritos emocionais, o gosto de reativar sensações passadas, religar-se, percorrer espaços e alcançar estrelas, em cujo centro se desenrola o renascimento espiritual do homem. Em parte da sua obra poética, o menino Dimas Macedo mergulha nessa sedutora viagem de ritmos, melodias e metáforas, reencantando seus caminhos, suas buscas, suas trilhas, partilhas e até mesmo as incertezas.
Amaram-me na infância com uma voz chegada de outras coisas, pois não sabiam das minhas atitudes e eu trazia comigo uma tristeza encarada como uma montanha abaladora. Minha poesia se multiplicava num canto de urgência e ninguém sabia das aventuras que eu perseguia: sonho, assim, por um vale profundo, consumindo-me sem razão, lado a lado...
(Infância)

Sob a proteção amorosa de sua cidade natal Lavras da Mangabeira e as bênçãos do Rio Salgado, vagueia o menino-poeta:

Era menino e o Salgado era como um irmão mais velho: eu ouvia sua voz nas águas e a correnteza sussurrava-me palavras tão amáveis. As águas eram um veio inesgotável de poesia e as enchentes do rio levavam sempre uma saudade que eu sentia - quando elas iam embora.

O vínculo entre o menino poeta e o poeta adulto se dá nas indagações do ponto de vista da criança. Onde está o tempo perdido? Cadê a Rua da Praia? Em “O Poeta e a Noite” o menino chega a ficar confuso:

Estou confuso na noite
Sonho que caminho pelas ruas de Lavras
É como se eu fosse uma criança
Que procura se distrair
Com um folguedo distante
Perdido na confusão da infância.

As reminiscências de infância parecem constituir a parte crucial (porque perdida) da existência do poeta Dimas Macedo, que aceita o grande desafio de buscar entender a criança interior e os motivos pelos quais determinados pensamentos e sentimentos o acompanha.

Inquieto-me no silêncio
Acho que outros poetas
Já deviam ter cantado canções de amor para a cidade
Pois só assim não restaria lugar para os meus poemas.

Não tem jeito. A rua da praia não existe mais. No íntimo do poeta uma criança exige reparos para tudo aquilo que o tempo engoliu, a gente, o caminho do rio e até mesmo o silêncio dos seus segredos.

Rua da Praia, transformada e substituída! Outrora, sossegada e proprietária do caminho do rio. Com gente que ia e vinha e com um pouco de crepúsculo em cada tarde. Quieta entre velhas paredes onde repousava o silêncio dos meus segredos.

O poeta não foge da sua verdade e desarquiva as imagens sombrias represadas no seu subconsciente. A emoção que ela lhe traz, é uma emoção infantil.

Tudo passa através de mim
Oscilo por ruas estreitas
Estendidas entre o Salgado
E a outra margem da cidade
Mas ninguém aparece
A cidade está morrendo.

Quando fala saudosamente da sua cidade natal, a voz do menino se faz ouvir poeticamente: Desfilar até o velho cemitério / Cavalgando talvez / no potro da infância / Ao sabor das histórias / Contadas por minha mãe / falando-me de heróis que eu não sei se existiram...

Constantemente o poeta adulto se reencontra com o menino, trazendo à tona acontecimentos e vivências dolorosas. O poeta adulto julga-se em condições de dialogar com o menino sobre a saudade que lhe dilacera a alma. E o menino vai entender? Não vai. Por isso às vezes é rebelde, noutras parece desamparado:

O que me dilacera é a certeza
de que os deuses maduros são o nada,
pois a liturgia do fogo nas aldravas
é o meu desejo soprando contra a porta.
A solidão do menino na parede,
a vela acesa e a mira da espada,
o rosto branco do morto em desalinho,
os meus cavalos alados na mansarda.

Quero bem à poesia do menino interior, porque percebo (e essa percepção é totalmente subjetiva) que este é o verdadeiro eu do poeta e o que corresponde à sua verdadeira essência, ao seu estado interno natural e harmonioso, mas profundamente questionador. Dimas Macedo é febricitante na ânsia de transmutar sua vivência lírica, em que o ser-poético mergulha nas próprias emoções. O poeta confessa as razões do caráter emocional da poesia, fato que se torna o núcleo nevrálgico da mensagem do seu texto. Percebo nitidamente o menino que lembra “do pai apascentando as estrelas e solidões em tarde duradouras”; o menino que se reinventa “na tecitura do caos”, e afirma: “Meu pai morreu de amor / e uma nuvem densa / lhe encobriu o corpo / e a minha mãe partiu sozinha / em uma noite fria / levada pelos ventos.

Para mim, que não sou critica literária e nem pretendo tal mister, sendo apenas uma leitora atenta e amante da poesia, concluo que Dimas é um poeta mutante, que está sempre se reinventando, se metamorfoseando:

Na tessitura do caos me reinvento,
pois o modelo da infância é uma faca
e a liberdade do corpo é uma rosa,
ungida de paixão e de esperança.
O que me dilacera é a certeza
de que os deuses maduros são o nada,
pois a liturgia do fogo nas aldravas
é o meu desejo soprando contra a porta.

A solidão do menino na parede,
a vela acesa e a mira da espada,
o rosto branco do morto em desalinho,
os meus cavalos alados na mansarda.
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