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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A busca da paixão - primeira parte (Nilto Maciel)





















Constante viagem. Eterna viagem. Somos viajantes da eternidade. Odisséia de ser.

PRIMEIRA PARTE

Meus pés são raízes profundas enfiadas no chão desta cidade. Sou os próprios muros desta fortaleza, pedras entre si grudadas e na terra afundadas. Encantado, armo passos livres, intento arrancar-me, debato-me no asfalto, e o visgo dele mais me prende. Projeto o regresso, porém meu vôo morre no próprio sonho.
Engolido feito inseto, debato-me no bucho do sapo. Na escuridão, tateio caminhos de saída. Tonto, vejo expandir-se o próprio núcleo. A cidade é um poço onde me afogo. Nado, e mais me afundo. E é infindável o fundo.
Estou definitivamente aldeado nesta cidade que, quanto mais se alarga, mais me comprime. Já perdi a noção de suas quatro portas, e dia a dia mais me extravio em seus labirintos.
Aonde quer que eu consiga ir, já serei esta carga ambulante de angústia e medos. Talvez porque nascido sob o signo dos apocalipses. Desde cedo me feriram a consciência com notícias de fim do mundo.
Qual o sentido de um passeio, de uma viagem de férias, de uma visita às ruas do passado? Mais fácil imaginar-me menino a brincar de esconde-esconde.
Não, o sossego de uma ruazinha ainda calçada a pedra não me livrará da buzina que me soa nos ouvidos. O riacho mais perdido fluirá aos meus olhos como puro exotismo. Na estação de trem, onde durmam cachorros sobre os trilhos, parecerei tudo, menos um viajante e sua mala atulhada de saudades. Não terei mais bancos onde possa sentar minha solidão, nem mais águas que me lavem a ferida de tantos anos, nem mais trens que me carreguem a passeio.
Que ir fazer ao pé do altar, onde Cristo me expulsará a chicotadas? O jeito é adorar os ídolos da indústria e fugir-lhes das rodas. Que ir fazer ao pé das mangueiras, onde as frutas cairão podres sobre minha imagem de cidadão? O jeito é pedir a esmola de um aperto de mão e escapar aos esbarrões. Pois vá eu correr pelas ruas, e os fantasmas de verde me erguerão seus cajados. Vá eu esconder-me detrás dos muros, e as aranhas me espreitarão a palavra.
No entanto continuo tão perto de meu passado. Apesar disso, minha aldeia – nova Almofala* – o tempo a soterrou. E como me é difícil essa tarefa de arqueólogo! Aqui e ali redescubro pequenas aparências carcomidas pelo pó, restos de amigos e de mim mesmo, caricaturas apagadas de meus medos, destroços daquele mundo perdido.
Aqui vivo, a contar as iras cotidianas, para não roubar os que têm, sob pena de dupla punição.
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* Almofala, povoação litorânea cearense, famosa por suas dunas e por ter sido soterrada várias vezes por elas.
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Para seguir o exemplo de fulano, que, por ser manso e humilde de coração, recebe palmadinhas nas costas e decerto terá o reino dos céus. Para carregar ao lombo a lenha que acenderá o fogo do chefe, sob pena de desobediência.
Aqui estamos, eu e meu desespero, a guiar os passos para não pisar em falso e cair na arapuca.


Aqui nada lembra Palma. As casas não têm quintais, as ruas não têm jumentos a pastar, nenhuma cadeira na calçada vê a eternidade pousar nas pedras do calçamento. Não há uma serra a cem passos do olhar, verde, gigantesca, cheia de montes e picos. Não há um trem diariamente partindo, diariamente chegando. Não há, sobretudo, a menina mágica que aparecia e desaparecia, ao bel prazer dos devaneios do menino sereno.
Aqui há, sim, a idéia de partir, de buscar a bola que ficou presa no forro, um pedaço de sonho enlaçado nos punhos da rede, uma reza esquecida na hora do sono, um minuto de ternura debruçado na janela, um vago olhar a seguir os passos daquela menina incomum.


Nunca tive pretensões de ser viajante. Nunca imaginei viagens. Talvez por andar sempre à volta de mim mesmo. E estes passeios, estes volteios, esta ciranda me bastam.
Não consigo estar sempre no passado. Talvez se fosse cego o presente não me atraísse nem um pouquinho. Mas vejo, e as coisas velhas desta casa me falam de mofo. O armário de fórmica comprado há anos agora acolhe o rádio e as baratas. O rádio, enorme, de segunda mão, fala fanhoso e canta engasgado. Enche a casa de notícias obscuras.
Enquanto chafurdo no chão da angústia, meu pai cochila, embalado pela monotonia das horas. Nem se dá conta das moscas nem de mim. Talvez sonhe os velhos tempos, e nem imagine a labareda que é minha cabeça.
Vez por outra me conta pedaços de sua vida, e tudo me parece lenda. E, no entanto, quem acreditará em mim? Serei também personagem lendário? Mas inventar-se é fazer-se.
Quiçá ele venha inventando seu passado, como todos fazemos. É forçoso fundar os alicerces, quando já as paredes estão rotas e os caibros do telhado podres. Ou, se não, reforçá-los. E nisso vai sempre a invenção. Refazer também é inventar.

Vasculho as gavetas da memória e em nenhuma página me encontro. Se me encontro é perdido entre as folhagens de esmaecidos quintais. Ou a mirar heróis sem nome. Não sou nenhum deles. Sou mera figura sem vida. Ou espectador de casos. Minúsculos fatos que mal dariam uma página de romance. Figurante anônimo de comédia de costumes. Às vezes, mudo ouvinte de histórias e lendas.
Os heróis são os outros, gente morta. Nunca, porém, príncipes de contos de fada. São personagens pequenos de dramas de circo, homens desaparecidos na poeira, criaturas que não vingaram para as tragédias sociais. Nenhum Lampião, nenhum padre Cícero, nenhum Getúlio, nenhum Conselheiro.
Ainda assim, sinto-me tão personagem como os protagonistas da História. Pois vivi debaixo do mesmo sol e sob a escuridão da mesma noite deles.

Se minha epopéia se limitasse em mim mesmo, talvez eu fosse mais inteiro. Porém sou um velho retrato cortado em pedaços, como as próprias figuras que tento colocar neste álbum, de maneira mais ou menos coerente. Tarefa quase impossível, porque teimam em se misturar. Olho para meu pai, e logo me aparece a cara de outro homem. Como antigamente. Da mistura de personagens nasciam outros. Apareciam-me reis, que eram grandes homens barbudos, armados da cabeça aos pés, voz de trovão, braços cheios de músculos, roupas brilhosas e pesadas. Mulas-sem-cabeça andavam pelos caminhos, o sangue escorrendo do pescoço. Lobisomens cabeludos, focinhos de cachorro, braços compridos, tocaiados detrás das mangueiras, urravam danadamente. E bestas-feras, dragões, cangaceiros, etc.
Meus horrores nasciam das histórias contadas no alpendre, na sala, na casa de farinha. Chegava-me devagar, escondendo-me dos olhos trabalhadores, cioso de tudo ouvir. Durante a farinhada contavam-se histórias longas, e os ouvintes ora riam, ora permaneciam compenetrados, assustados.
Talvez eu fantasiasse demais e imaginasse aqueles personagens de histórias de trancoso, da carochinha e de cordel, segundo uma ótica toda minha.
Certas figuras não consigo apagar de meu álbum. Se me fosse possível, ao menos, sobrepor-lhes outras! Seria mais cômodo, no entanto, jogar tudo fora. Mas como? Quem poderá se livrar do passado?
A substituição é realizável e simples. Basta colar-se a figura de fulano em cima da de sicrano. Faz-se mister, no entanto, a semelhança das duas feições. Do contrário, os traços característicos de sicrano continuarão visíveis. Dar-se-á confusão de traços. Surgirá um monstrengo.
Se fulano se assemelha a sicrano, haverá apenas troca de atores. O drama será o mesmo. E, se assim é, para que a substituição?


Meu velho pai cochila. A morte o espreita. Moscas pousam em suas mãos enrugadas, em seu rosto gasto. Sua boca – que impropérios terá dito? – está aberta, feito a Gruta dos Morcegos. Ele também é meu príncipe, meu gerador. Porém não deve sequer saber de minha dor, tão grande, bem maior que uma caverna.
Meu pai, ele não me abandona. Sua figura pintada por mamãe e aquela por mim mesmo apreendida aos retalhos e montada pacientemente. Todas as figuras são costuradas, remendadas, quebra-cabeças. E nenhuma pode ser autêntica, se seus pedaços alguns se perderam no lixo, as traças roeram outros, o tempo os desbotou.
Meu pai! Sua fala na cabeceira da mesa, tão distante que parecia muda. Eu enfiava feijões nas brechas das tábuas, para desenterrá-los durante o cochilo da reza. Padre-nosso que estava no céu. E eu na terra, joelhos doídos, rezava meninas nuas e sujava o calção.
Quanta vergonha de ser pecador. Eu me confessava a Deus. Prometia-lhe não mais pecar, fugir das más companhias. E fugia de fato dos outros, de suas conversas escandalosas, de seus gestos e atos pecaminosos. De noite sonhava com cães celebrando missa e gatos passeando às tardinhas na praça, conversando e rindo feito mocinhas e rapazes.
Estes sonhos mais tarde me atormentaram, de tanto eu não saber encerrá-los.
As meninas de minhas noites não existiam, voavam feito borboletas nas manhãs e tardes de flores. Adiante eu as agarrava, sem querer mais largá-las. Presas entre meus dedos e punhos da rede, elas eram minhas. E eu me lambuzava no gozo, enquanto o mundo todo latia. Depois a sinfonia dos galos se alastrava pelos quintais e me despertava. Os sinos tocavam e eu espantava o sono das muriçocas com o pelo-sinal, os dedos grudados de prazer, que eu cheirava arrependido e saudoso.
Quando chovia, corríamos para casa. E pedíamos a Deus que aquilo parasse. Passado o temporal, abríamos portas e janelas. A água escorria veloz pelas coxias e carregava barquinhos de papel e lixo. E longe, bem dentro de meus olhos, uma menina brincava de se banhar na chuva, feito ninfa, feito flor.

Cutuco a memória como se fosse chão, à cata de brinquedos perdidos, de pedaços de minha vida – cacos de mim mesmo. Encontro-os sempre, mas sinto que a terra devorou muitos deles. O tempo os comeu – vermes de meu tormento.
Os trens descarrilaram nas ladeiras. Morreram os maquinistas, os passageiros. Um mundo de escombros. O matagal tomou conta dos trilhos. Não há mais estrada de ferro. Nem estação nenhuma.
Os cavalos de pau, os bois de melão, as galinhas não-sei-de-que – todos os animais se esfacelaram. Cavaleiros, vaqueiros, criadores – todos enterrados.
A própria terra onde viviam não existe mais. O mar a inundou. O grande mar do tempo. Aquele mundo é morto, destruído. País fora dos mapas. E tudo em mim é confusão. Águas tormentosas, mar encapelado, tempestade.

Havia em casa vinte portas e quatro janelas. Duas para a rua, duas para o quintal. Passarinho preso em gaiola, eu imaginava vôos e corria de uma ponta a outra. Um cachorro andava lerdo a virar latas. O burro do leiteiro capengava. Além das últimas casas o verde da serra anunciava onças. Porém tudo me parecia muito distante. E eu me lembrava do gato. Talvez vadiasse pelo quintal, à cata de andorinhas. De uma das janelas eu o avistava. Brincava de se perder entre as bananeiras. E eu seguia seus passos e me perdia. Até encontrar a menina invisível.
Enquanto as dúvidas me devoram, esquadrinho os meus arredores. Esta sala – clausura que me imponho bestamente. Estas paredes que sobem no rumo das telhas, inalcançáveis, furadas aqui e ali pelos caibrais de nossa genealogia, enfeitadas dos armadores do sono e dos sagrados quadros da família. Meu pai mira o mundo de cima de sua mocidade, minha mãe pousa seus sonhos na grinalda da servidão, e Jesus abençoa tudo, triste feito um condenado.
Por que não sair para as ruas, ver as pessoas, conversar, arranjar mulher? Tantas por aí. Não, não me dá vontade nada disso. É urgente vigiar estas moscas. Ou apenas vê-las nos quadros da parede, cevadas de defunto.
De tanto cismar, perco a noção do tempo. E diante do papel às vezes nem sei se estou em casa. Para mim esta sala era aquela onde eu me refugiava para pensar na menina de meus devaneios.
Visões, irrealidades, abstrações! Sim, mas tudo existe e não posso negar com palavras as realidades dos outros sentidos. Ainda quando passadas. Nas cavernas da memória estão gravadas as inscrições dos primeiros homens.
Ora, que importa o passado! Só o presente tem sentido. Sim, o presente.
Reparando bem, no entanto, o presente é aquela casa de aranha no canto da parede ou aquela mancha que a mão de uma goteira pintou. E já morreu.

Sou funâmbulo para mim mesmo. Na corda bamba da vida passeio. Rio e choro feito menino. Se cair – e sempre caí e um dia cairei definitivamente – chorarei a má sorte do palhaço.
Não poderei viver eternamente sobre arames ou cordas. O espetáculo não pode durar muito. O equilibrista é humano, cansa e quer descansar, dormir, sonhar.
Preso estou às teias que teci. Sou Ulisses. Meu destino tracei penelopemente. Tecido, ainda me teço. Teço o rei tido em aventuras. O rei sou eu. Meu rei, meu reino.

Eu queria apenas ser como um animal. A água do esgoto escorria sob os pés das galinhas, que cacarejavam, talvez a sonhar desconhecidos insetos, coloridos dejetos. E enfiavam o bico, sem medo, naquele pântano.
Nos becos havia sempre um jumento a espojar-se no chão. Livre para sujar-se, sem vergonha de seu corpo. Ouvido grudado ao coração úmido da terra.
Eu queria esconder-me nas copas das árvores, confundir-me com gafanhotos e lagartas. Desejo de perder-me para achar-me solto, sem compromissos nem amarras – gato doméstico voltado para sua natureza felina. Fera indomada e nunca pressentida. Correr pelo mato, alucinado de beleza e liberdade, liberto de panos pecaminosos, as roupas que nos escondem dos olhos dos outros. E dos nossos.

Ao me sentir perdido no jardim de minha intimidade, pareceu-me estar doido. O mundo rodou e eu não sabia em que lugar dele me encontrava. Daquele quintal em expansão, como se me tivesse reduzido a um olhar para dentro, ou paralisado no seu centro. Para todos os lados um fim de mundo, vastidão de terras verdes. Bananeiras, laranjeiras, limoeiros, jaqueiras.
Perdido, já não sabia onde ficava o esgoto por onde escorria a água suja e que, quando chovia, mais parecia um canal. Traria peixes em sua correnteza a caminho do Potiú? Inundaria a estação de trens, as ruelas, os morros? Levaria na enxurrada o sonho de um dia conhecer as raparigas e sua vida misteriosa? E, no seu constante escorrer, poderia engrossar o leito do rio e descer para o mar?
Não sabia mais onde ficavam as fruteiras, nem sequer os muros. Ao me achar, se me achei algum dia, todo o espanto do mundo havia feito de mim um sonhador incurável.
E por onde andava o bichano? Talvez a ressonar entre a folhagem, cansado de roncar e engolir pelancas. Velho, já não se atrevia a perseguir ratos na despensa, a meter-se entre as achas de lenha, todo fúria e unhas. Preferia arranhar as bananeiras macias e beber leite de vaca, preguiçosamente.
Em que latitude da infância eu me achava? Diante do muro, com toda certeza. Mas qual dos muros me afrontava? O dos fundos, o da direita, o da esquerda? Que direita, que esquerda? O da direita de quem vinha dos fundos era o da esquerda de quem partia de casa. Se ao menos pudesse olhar para o quintal do vizinho! As lagartixas espiavam o mundo de cima dos muros e me saudavam. Não, elas não me assustavam. Só me causava pavor ferir-me nos cacos de vidro.

Naquele dia de medo e ousadia, imaginava tudo, inclusive os caminhos da perdição. Ou o inferno cristão, o fim do mundo tão propagado nos sertões.
Naquele dia delirante todas as mínimas coisas cresceram em encanto para mim.
Para trás ficava a bola de meia no canto da parede, debaixo do armário, exposta ao sol no telhado. As galinhas de melão, os bois de sabugo, minha criação ao relento. O time de botão, toda sua grandeza e fama dentro de uma caixa de fósforos.
A voz das coisas silenciada. E como imaginar isso, se ainda permaneço o mesmo ouvinte de pedras e bichos? Meus ouvidos me acusam constantemente de ouvir palavras cruéis.
Naquele dia de perdição esqueci as rezas sem fim na boca da noite, marteladas na memória. Em nossa casa rezava-se em demasia, chorava-se diante de falecidos amados, pedia-se a proteção de um deus marmotosamente poderoso, fantasmagórico e pai de todas as assombrações.
Na angústia de me saber sem rumo, eu sentia a ausência de meu pai, do rádio velho, rouco, inerte, das pedras do calçamento mais toscas. De meu gato morto no bico imundo dos urubus. Esmagado pelo balanço da cadeira a rolinha e meu remorso. Tudo morreu naquela vez, menos o desespero de ser mortal.
Naquele dia tudo eu lembrei. Pendurado no cabide ficou o chapéu de meu pai. Perdidos no estirão da calçada os ecos de seus passos certos, contados, medidos. Mil para começar a manhã. Outro tanto para regressar e se empanturrar à mesa. Uma porção para enfrentar o sol quente. Mais mil para terminar o dia e descansar as pernas.

Perdi-me entre a última porta da casa e os muros do quintal. No pequenino território de minha primeira utopia, naquele país sem leis nem reis, cujas fronteiras o ligavam ao resto do mundo.
Tudo, porém, mudou. No mapa já não existe aquele Reino da Perdição. Agora a casa é outra e nem sequer se parece com aquela. Nem suas pedras são semelhantes às daquela, por mais minerais que sejam.
A casa de meu quintal-país era cheia de maravilhas e fadas, e nela vivi a história que nenhum trancoso escreveu. Hoje são escombros. Demoliram-na as pás da impiedade. De pé restaram apenas os muros dos castelos de areia, concretamente erguidos e firmes.
Perdi-me na geometria dos passos, por palmilhar o chão com as próprias asas. Perdi-me na geografia ilusória daquele quintal sem fim, por mera insensatez.
Perdi-me sobretudo em mim mesmo, nos tortuosos caminhos da solidão, para nunca mais me achar, nem encontrar jamais o caminho de volta, nem quaisquer outros que levem a algum lugar.

A história do quintal pode ter sido apenas sonho? Ou é sonho este momento? Como distinguir um tempo de outro, se no interior da caverna de minha consciência fujo pelos labirintos de mim mesmo?
Meus sonhos eu não os levo a ninguém. Antes, qualquer padre podia me mandar às penitências. Agora os analistas me ouviriam e se enriqueceriam de elementos para suas teorias, se eu tivesse dinheiro. Não dou mais esse prazer aos carrascos, nem vou servir à literatura dos outros. Eu me confesso e analiso todos os dias. Não me penitencio, porque sou vítima. Nem me arranjo curas, porque, se deixar de sonhar assim, terei me matado.
Vivo também o passado. É pouco viver só o presente. O homem é poço onde se mira enquanto mira.

Perdi-me em mim. Nos infinitos corredores desse labirinto de abstrações. Em vão busquei a porta de saída, o exterior de mim, a luz do sol, os outros. (Nem sei se há porta de saída. Talvez eu esteja aprisionado aqui, em mim, no infindável território da solidão. Mas, se entrei, há uma porta. E nela poderia estar a saída.) Em vão lutei nas trevas, tateando paredes, feito cego. No entanto eu via. Ora inscrições, ora insetos, ora nada. Como se lá tivessem estado outras criaturas, meus ancestrais. Como se aquilo fosse cemitério. Cidade subterrânea. O outro lado da vida.

Não busco mais saídas. Convenci-me de que em mim mesmo resido, sou. Perdi o complexo de ovo, feto. Minha casca é meu limite. As paredes da placenta me bastam. Conformei-me com ser criatura inacabada. Resguardo-me do chão de pintos, galinhas, galos. Do chão dos meninos sem razão. Ouvirei o piar de meus irmãos, longe deles. E seu canto. Seu choro.

Eu já falei da menina de meus sonhos? Se não, passo a falar. E começo dizendo que somos fictícios. Não existimos de verdade, nem eu nem ela. Imaginei-a, como ela deve ter me imaginado. Criamo-nos um ao outro.
Por que devemos ter existido de fato? Podemos ter sido apenas personagens de ficção. Nada comprova nossas existências na Terra. Como nos mitos e nas lendas.

Sentado no chão, escavaquei a terra, olhei de novo para o muro e, de repente, apareceu minha menina. Que nome tinha? Nem sei se é possível escrevê-lo. Ela, sim, existia mesmo e parecia uma fada. Seu sorriso nunca se escondia, por mais ausente que estivesse. E como adorava brincar! De ser ela mesma, de se transformar em mil seres diferentes e mágicos. Às vezes, cantora e bailarina, na cadência das nuvens, no rumo do infinito. Desaparecia depressa de diante de meus olhos e eu sossegava e me punha a inventá-la de novo. Partia do nome, aquele nome engraçado e bom de pronunciar. Dava-lhe muita boniteza, como a dela mesmo. Fazia-a rir, toda ela alegria. Convidava-a a brincar, de qualquer brincadeira, ao gosto dela.
Essa menina, de tão eterna, eu a recriei em outras. As reais, as imaginárias, as sonhadas. Os personagens dos sonhos são invenções ou recriações?
Esqueço os instantes fugidios de minha infância. Quero apenas aquela utopia deleitável da menina imaginária. Não, ela existia mesmo. Morava noutra rua, numa casa grande e azul. Devia ter mãe e pai e estudar na cartilha. Ou só vinha de férias, de outras terras, de bem longe, do mar, do sertão?
Pensar nela me dava prazer. Pensar muito, até esquecê-la, tê-la apagada de meus olhos. Esquecia-a, perdia-a de vista. E punha-me de novo a procurá-la pela casa, pelo quintal. Debruçava-me à janela, olhos inquietos a subir e descer a rua. Aguardava-a descida do sol, e chorava. Esperava-a descida da lua, das estrelas, e sonhava. Vãs esperas e buscas! Não a tendo de volta, confundia-a com outras. Surgiam na porta da rua duas pernas e um vestido que aos poucos me danavam. Aparecia no meio da praça um sorriso que logo se fazia careta estranha. Nenhuma era ela, e eu chutava a bola de meia para o céu, com força e raiva. A bola subia, não voltava mais, caía nos telhados, desaparecia.
A menina olhava para mim e ria. Sem jeito, eu também ria e olhava para ela, sua beleza. Como tinha aparecido ali no quintal? Só podia ser a menina das aparições, porque só ela aparecia assim de repente, sem aviso, quando eu menos esperava. Teria pulado o muro, vindo dos quintais vizinhos? Ou já vivia no meu quintal, escondida no meio das bananeiras, do mato, abandonada pela mãe, pela madrasta, castigada por não querer estudar, desobediência, má-criação? Tudo ela negou. E, aborrecida, ameaçou: Se eu continuasse cheio de perguntas, ia embora. Pedi que ficasse. Andava perdido, não sabia mais o caminho de casa, precisava de companhia. Chamou-me de besta. E riu. Compreendi: não queria me ofender; antes, me proteger. Aproximei-me mais dela, confiante e sem vergonha de me mostrar medroso. Mamãe podia me castigar, se eu não voltasse logo. A menina me olhou demoradamente. Também precisava ir para casa. E, súbito, desapareceu, como as fadas dos bosques. Olhei para todos os lados. Lagartixas me espiavam com olhos sutis. Entre as folhas das árvores avistei pedacinho da parede da sentina.
Que me restava fazer? Esperar infinitamente por ela? Ou buscá-la noutras latitudes, além das fronteiras daquele mundo feito de solidão, lodo e sombras?
Decidido, saltei o esgoto – como se atravessasse, de uma só passada, o Rubicão, e, vitorioso, alcançasse a Eternidade.
Chegando ao pequeno corredor, nem sequer desviei a vista para a sentina e o banheiro. Não, ela não se esconderia ali.
Na cozinha, mamãe atiçava o fogo do fogão. Nem me viu voar. Fui direto ao quarto de dormir e me escondi detrás do guarda-roupa. Sentei-me no chão frio e pensei seguidamente nela, na menina.
E ainda penso, porque a busco sempre.

Aquele tempo da menina bonita, visão de meus olhos sonolentos, do quintal e suas fruteiras, é minha obsessão. Naquela época amanhecia de repente, tivesse sido noite ou dia claro, e eu corria ao terreiro para ver o sol. Minha mãe vivia sempre na cozinha, a abanar as brasas debaixo da trempe, e meu pai não parava de chegar e sair. Os galos cantavam engrossando o pescoço e as galinhas se arrepiavam e fugiam. E tudo em mim eram lembranças e uma vontade danada de falar e contar histórias engraçadas. Calava-me, ria sozinho, e me punha a desenrolar o carretel enovelado dentro dos olhos. Enrabichava-me a minha mãe e lhe falava de estripulias em cima dum cavalo branco muito gordo. Foi sonho, meu filho. Mas os bichos existiam de verdade, eu existia, estava ali vendo a tapioca dar pulo mortal e cair estirada no meio da caçarola.
Nós existíamos e vivíamos a mesma vida.

Como é fácil enganar com palavras! Quem perceberá o quanto estou iludindo? Ou estarei me enganando com palavras? Não, não existe engano, ilusão. Nós é que estamos inaptos para as sutilezas.
Ninguém pode escapar ao sortilégio das palavras que inventa. No entanto poucos são os inventores de palavras e sonhos.
A história de cada um de nós é a história que inventamos. Nós nos mitificamos a cada sonho, a cada delírio, a cada descida ao poço da consciência.
Há tempos sonhei com uma menina-moça. Seria a mesma menina do quintal? Terá se dado um reencontro no plano do sonho, depois de tantas buscas? E, se a achei (agora não é possível o verbo inventar), buscava e busco a Paixão. Toda viagem é a busca da Paixão. É sem sentido falar-se de passado no plano da consciência. Não temos buscas e paixões. Somos Busca e Paixão.

Apesar de tudo, agora me sinto quase feliz. Como se tivesse acabado de encontrar a solidão. Não a da casa abandonada, com teias de aranha, suja, empoeirada. Não a dos cemitérios, dos jazigos, das lousas frias. Não a das selvas, das florestas, dos matagais. Não a solidão da fantasia. Mas a solidão que busquei quando menino.
Estou quase feliz. Como se estivesse de partida para o paraíso. O paraíso sou eu mesmo. Eu e meu passado. Como se fosse uma fotografia. Ao fundo o muro manchado. Uma lagartixa passeia em seu dorso. Aos lados, ervas, bananeiras e seus cachos pesados. Ao centro, meus olhos de menino – e toda a felicidade do mundo.
Então nada existia, a não ser o riso e a vida.

(continua)