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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Vasto abismo - segunda parte (Nilto Maciel)



 






(Gravura de Rembrandt)

SEGUNDA PARTE

Humberto perguntou como ia o escritor. Vânia se fez de desentendida. A que escritor ele se referia? Na televisão passava um filme publicitário. A seguir passou outro. Ela se aborreceu. Havia propaganda em demasia. Queria ver logo a outra parte do drama.
Finalmente acabou o tempo dos comerciais e Las Vegas reapareceu na tela. Cassinos iluminados, homens e mulheres elegantes a jogar. Humberto e Vânia calaram-se.
Mesmo longe da biblioteca, vez por outra ela sentia cheiro de livro velho. E jurava mudar de função. Voltaria à máquina de escrever. Preferível passar o dia datilografando ofícios a andar fedendo a traça e mofo. Além do mais, aparecia cada tipo esquisito à procura de cada livro estranho!
Isaque talvez não fosse um tipo esquisito. Nem lembrava mais a primeira vez em que o vira. Quando se deu conta de sua presença, já ele havia passado talvez horas a mirá-la. “Hoje vim aqui só para te ver”. Sorriu, e lhe perguntou o nome. Procurava livros de autores antigos. De preferência gregos e romanos. Se houvesse uma seção assim... Havia, sim; ficava mais para o fundo.
Tantas vezes ele voltou, que ela não mais o esqueceu. Fazia perguntas sobre livros e sobre ela. Ia e vinha, namorava aquele ambiente de cheiro forte, perdia-se entre as estantes. Disse-lhe, com certo prazer íntimo, ser casada e mãe de dois meninos. Só não falou da idade. Se ele não perguntava, não tocaria no assunto. Se tivesse 30 ou mais, subtrairia 4 ou 5.
Isaque não disse logo ser escritor. Até brincou: “Sou um leitor inveterado, sem cura.” Ela também gostava de ler. Não autores antigos. Preferia os modernos. Lia desde menina. E até escrevera poesia. Agora lia menos. Dispunha de pouco tempo. Os filhos, a casa, o trabalho. De qualquer forma, ele queria dar a ela um de seus livros. “Você é escritor?”
Não teve coragem de levar para casa o livro ofertado por ele. Aquela dedicatória, se lida por Humberto, seria causa de briga. Chamava-a de flor e falava em amizade e admiração.
Falou de Isaque a algumas amigas. Estaria ele querendo envolvimento amoroso com ela? Ou apenas amizade? Uma delas, Joana, arregalou os olhos, quase entrou em pânico. Melhor dar um basta naquilo. Falar sério com ele. “Você não disse ser casada?” Dissera, sim. E mesmo assim ele continuou a atacar? Só podia ser um grande sem-vergonha. Cuidado, muito cuidado! Aquilo acabaria em tragédia! Bastava a história chegar aos ouvidos de Humberto.
Seguiu à risca os conselhos das amigas. Ao primeiro convite para saírem juntos disse “não”. Ele não insistiu, mas voltou nos dias seguintes à biblioteca. Vânia escondia-se, fugia dele. Passava horas em aflição, feito criança medrosa. Por que não enfrentá-lo?
Ocorreu, então, outro curto e áspero diálogo entre eles. Não desejava nenhuma amizade com Isaque. Nada de intimidades. Se não fosse possível conversarem como simples conhecidos um do outro, melhor ele sequer lhe dirigir a palavra. Como se nunca tivessem se conhecido.
Sabia ter sido ríspida, mal-educada. Talvez Isaque não merecesse aquele tratamento. Pois apresentava-se sempre muito amável. E poderia mesmo querer somente amizade.
Não, Joana tinha razão. Um homem não importuna uma mulher senão com intuitos amorosos. Claro que alguns contestam isso. E até essa contestação faz parte do jogo da conquista.
Além do mais, adorava Humberto. Não exatamente a pessoa, mas o macho. Com ele satisfazia-se plenamente na cama. Um homem ideal. Chegava a ser bruto, animalesco. Sobretudo após beber. Ameaçava-a de morte, caso ela o “traísse”.
Vânia não entendia o motivo das ameaças. Pois nunca dissera a Humberto nada como: “Não me traia, para não ser traído.” Pelo contrário, jurava amor e fidelidade até a morte. Não descumpriria o juramento prestado perante Deus.
E todos os domingos assistiam à missa. Desde crianças.
Pois exatamente ao regressarem da igreja, num domingo chuvoso, Humberto encontrou em casa umas “poesias imorais”. Dez ou mais folhas de papel. Entre as páginas de um velho romance. De certo Boter Wrigus. Presente de aniversário de Vânia, dado por uma amiga.
Humberto não conseguia ler nada. Só jornais. Lia os cadernos sobre esportes, boletins do Exército, folhetos da Igreja. Qualquer livro dava-lhe sono, preguiça, tédio. Folheava-o, lia uma frase aqui, outra ali, e nada lhe despertava interesse por aqueles pequenos objetos feitos de papel.
A curiosidade, ou a ociosidade, levou-o a folhear o romance de Boter Wrigus. Um dos maiores vendedores de livros do mundo. “Esse escritor é americano, meu bem?” Se não fosse americano, seria inglês, australiano, irlandês... De qualquer forma, um homem muito rico.
Retirou as folhas de papel de entre as do livro e leu um verso. Sentiu-se mais curioso. Aquilo cheirava a “porcaria”. Leu todo o primeiro poema. E passou a outros. Sim, um amontoado de bobagens. E quem as trouxera para dentro de seu lar? Talvez a doméstica. Sua mulher não seria capaz de ler tamanha imundície.
Ainda desejou rasgar as folhas, queimá-las, levá-las à lixeira. Só desistiu disso quando percebeu que as palavras Marcus Sallustius Secundus constavam em todas as folhas. Seria o autor das poesias?
Ao vê-lo às voltas com os versos, Vânia pensou em arranjar um bode expiatório que a livrasse de reprimendas ou mesmo agressões. E pôs-se a rir. Ele ergueu a mão que segurava as folhas: “Estou esperando uma explicação para isto.” Ela continuou rindo. Brincadeira de uma amiga. Aliás, não lera ainda uma só folha. Pois não devia ler mesmo. Pura imoralidade! E quem escrevera aquilo? Um poeta romano. Ele riu. Desde quando ela gostava de poesia? Se ainda fosse “poesia romântica”! Nem prostituta lia aquilo. Qual o nome da amiga? Joana não seria capaz de tanta baixeza.
Pressionada, Vânia acabou contando parte da verdade. Aquela papelada pertencia a um amigo. “E com que intenção ele lhe deu isto?”
As rusgas tornaram-se freqüentes. Ela vivia nervosa, agitada. E ora se sentia culpada, ora inocente. Via-se adúltera e mal conseguia olhar nos olhos de Humberto. Com remorsos, transformava-se em cozinheira, copeira, arrumadeira. Ele estranhava as atitudes dela. À noite ela o provocava, beijando-o, abraçando-o. E jurava a si mesma dar um ultimato a Isaque, no dia seguinte. Ou ele deixava de perseguí-la, ou ela contaria tudo a Fátima e Humberto.
Não, não diria nada nem à mulher de Isaque nem a seu marido. O tiro poderia sair pela culatra. Não acreditariam em sua versão. Humberto diria sempre que estupro só acontece com criança. Mulher adulta sabia se defender, se quisesse. Machista como o resto dos homens!
Nesses momentos sentia-se apenas vítima dos desejos de Isaque. Sem culpa e sem pecado. Inteiramente inocente. E jurava não cozinhar, não arrumar a casa, não lavar a louça. Deixar tudo por conta de Cristina. E, se Humberto não a solicitasse de noite, dormiria o melhor dos sonos.
Uma noite teve um sonho inusitado. Após ler os poemas de Salústio. Banhava-se numa fonte com outras ninfas. Súbito, de entre os arbustos, surgiam alguns faunos. Entre eles Isaque. Apavoradas, punham-se a correr. E assim terminava o sonho.
No dia seguinte ele a convidou para saírem juntos. Lembrou-se da perseguição noturna e disse-lhe não. Melhor afastarem-se um do outro. Se fossem solteiros, poderia ser diferente. E, sempre que o via aproximar-se da biblioteca, escondia-se, retirava-se. Contava com a ajuda, o socorro de Joana. “Ele chegou” – avisava. Logo Isaque percebeu o jogo de Vânia. E durante dias seguidos não apareceu. Já acreditava ter ele desistido dela, quando Isaque reapareceu. Só restava ameaçá-lo. Caso continuasse a perseguí-la, faria escândalo.
Parecia até brincadeira, jogo de esconde-esconde. Quando menos esperava, ele reaparecia. Se o aguardava, ele não dava sinal de vida. Ou Isaque tramava outras maneiras de se fazer presente. Como quando enviou ao endereço dela um envelope recheado de versos. Ao recebê-lo, das mãos de Humberto, sentiu um arrepio em toda a pele. Como se adivinhasse o nome do remetente. No entanto Isaque utilizou nome feminino – Quésia. Na verdade, um anagrama. “Quem mandou essa carta?” Vânia titubeou e terminou dizendo: “Uma amiga”. Apesar de não se lembrar de nenhuma Quésia.
Eram poemas do próprio Isaque. Todos escritos para Vânia. Um deles – “Soneto da paixão insana” – deixou-a profundamente comovida. Talvez pela declaração de amor.
Uma loucura aquela atitude de Isaque. E se Humberto lesse os versos? Melhor, pois, queimar toda a papelada. Quando, onde? Pois não se queimam cartas de amigas.

(Continua)