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sábado, 28 de junho de 2008

Sobre Gilbertos (Pedro Du Bois)



Não me refiro aos gilbertos passados,
digo dos presentes em palavras soadas
na exatidão da terra e da vontade
persistente. Não digo dos gilbertos idos,
falo sobre os apresentados em obras
permanentes. Não falo dos gilbertos
ausentes, escrevo sobre os residentes
na perpetuidade da amizade.
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terça-feira, 24 de junho de 2008

Subverso (Raymundo Netto)

















Horas. Horas. Horas.
Insistia o relógio na parede: desista, homem!
A manhã sobranceirava à ruína da caneta embotada há tempos.
Imerso num oceano de sem-idéias, o gramático se rendia à evidência:
“Não consigo escrever... Logo eu?”
De fato, descobria-se engaiolado entre velhas regrinhas endurecidas da palavra. O rigor afetado e a gramatiquice, quase não o deixavam pensar. Tinha ele a mania de concordar com tudo, tropeçar em vírgulas, falar quase que soletrando. Como todo homem-nalgas, elevava a metáfora à potência logarítmica e se enfurecia com o desrespeito às conjunções; mas daí a detestar a liberdade “quase imoral” dos poetas? “Necrófilos!”, afirmava.
Escrevia, escrevia, escrevia... direto ao cesto de papel. Nada o contentava. Nada, nem significado nem significância.
Naquele dia, porém, desbastou-se em sua mágoa vernácula. Pegou o caderno repleto de imbróglios de norma culta e, suspendendo-o à janela, pôs-se a sacudi-lo, furioso, esparramando toda aquela gramaticagem no jardim, até deixar suas páginas completamente em branco. Por outro lado, a grama, agora adjetivada, estava verde, linda, sublime e viçosa.
Em sedição contra o dogma, gizou, na parede mesmo, um círculo que chamou de “ó”. Afastou-se, estendeu o braço e o polegar, fechou um olho, voltou à parede. Ladeou seu “ó” de letrinhas imbricadas e ponteou, ponteou, ponteou finalmente. Alucinou: enquanto o mundo gira, somente as estátuas ficam paradas. Na parede, apenas:
“Oras. Oras. Oras.”

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terça-feira, 17 de junho de 2008

A bolha ilumina-se (Entrevista com Nilto Maciel)













Registro histórico nos arquivos de O POVO: Nilto Maciel (à direita) ao lado do recém-falecido José Alcides Pinto (Foto: Banco de dados)



Em entrevista ao Vida e Arte Cultura, o escritor Nilto Maciel, autor de As Insolentes Patas do Cão, reflete sobre a literatura local e antecipa detalhes da nova versão de Panorama do Conto Cearense(Jornal O Povo, Fortaleza, Ceará, 15/6/2008)


O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) costumava comparar a estrutura do conto a de uma bolha de sabão. Ele a descrevia como intrincada, concentrada e altamente volátil. De modo geral, sugere a pesquisadora Nádia Battella Gotilib em Teoria do conto, volume que integra a série Princípios, os bons autores partem do interior imponderável da bolha para uma exterioridade - a realidade - cuja estrutura também se articula de forma desordenada. Em seu livro, Nádia varre a história desse gênero controverso, porque cambiante, e a revira à procura das mais variadas explicações que já se deram na longa e mal-fadada busca por definições mais precisas de uma modalidade narrativa imprecisa. Escritor e editor da revista Literatura, Nilto Maciel, 63 anos, dedica parte do seu tempo ao exame da bolha de Cortázar. Em Panorama do Conto Cearense (2005), livro que ganhará versão ampliada e revista ainda neste ano, por meio do edital da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará -, Nilto inventaria contistas de ontem e de hoje. Conciso, o livro também traz uma síntese cronológica dos principais autores e também dos periódicos e grupos literários que marcaram a história das letras cearenses. Em entrevista a O POVO, Nilto fala sobre a escrita do livro, a experiência de O Saco e a ausência de uma crítica literária no Ceará. (Henrique Araújo, especial para O POVO)


O POVO - Publicado em 2005 e prestes a sair em uma nova edição, Panorama do Conto Cearense tem um caráter de apanhado ou apresentação breve da produção literária de contos ao longo da história. Como foi o processo de pesquisa para a escrita desse livro?
Nilto Maciel - Eu tinha conhecimento dos contistas antigos, Oliveira Paiva, Herman Lima e outros. E também dos contemporâneos, da minha geração: Airton Monte, Carlos Emílio Correia Lima, Gilmar de Carvalho... O pessoal que surgiu em torno da revista O Saco. Depois fui embora pra Brasília. Fiquei 25 anos lá. Começava minha carreira literária, com dois livros publicados. Mas acompanhava o pessoal daqui. Todo ano eu vinha pra cá. Sabia das novidades de cá, recebia muitos livros autografados. Alguns escritores eu não conhecia pessoalmente. Por exemplo, Francisco Carvalho e Moreira Campos. Este eu devo ter visto umas duas vezes. Depois comecei a conhecer os novos, Dimas Carvalho, Tércia Montenegro, Jorge Pieiro, Pedro Salgueiro. O Panorama surgiu dessas leituras. Escrevi vários artigos sobre contistas cearenses. E aí, conversando com amigos em um bar, porque essas idéias sempre surgem em bar, a idéia surgiu. O Pedro (Salgueiro) perguntou: “Por que tu não escreves sobre o conto cearense?” Sânzio (de Azevedo, professor de literatura cearense da UFC) publicou um ensaio sobre o gênero. Braga Montenegro também. Eu fiquei instigado com as observações do Pedro Salgueiro. Passei então a ler e reler todo mundo, tanto os velhos como os novos, e passei dois anos escrevendo. Fui reler todos os contos do Juarez Barroso, do Moreira Campos, de todos. Ainda neste ano vai sair uma edição ampliada dele, aprovada em edital da Secult. Tem 300 páginas. Nele, eu coloquei um conto de cada grande autor analisado. Vai ter 25 contos. Por exemplo, junto à análise dos contos de Rachel de Queiroz ou Caio Porfírio Carneiro virá um conto deles. O título talvez seja Da Quinzena ao Caos, por sugestão do Sânzio de Azevedo. Eu queria Da Padaria ao Caos, mas A Quinzena, jornal de um grupo literário importante, é anterior à Padaria Espiritual. Espécie de ensaio da Padaria. Muitos dos autores padeiros estiveram n’A Quinzena.

OP - Quem foram os primeiros cultores da narrativa curta no Ceará?
Nilto - Oliveira Paiva e Adolfo Caminha. Os dois escreviam e publicavam nos jornais da época. Existiram outros contistas bons, mas que não se tornaram nomes nacionais. O Juvenal Galeno ficou mais conhecido como poeta. O Araripe Júnior não é tido como um bom contista. Esses foram os autores que marcaram o século XIX. No século seguinte, Gustavo Barroso e Herman Lima são dois nomes importantes.

OP - Que momentos da literatura cearense o livro alcança?
Nilto - Ele começa no século XIX, com Juvenal Galeno e outros, vai, sem se deter muito, até os anos de 1970. Passa por Rachel de Queiroz, Moreira Campos. Depois o livro se concentra nas gerações que deram origem ao O Clã, O Saco e Siriará. Passa por Airton Monte, Gilmar de Carvalho, Natércia Campos. Enfim, caminha até os anos 1990, quando surgem Pedro Salgueiro, Jorge Pieiro, Carlos D’Alge, Dimas Carvalho, Paulo de Tarso Pardal, Ronaldo Correia de Brito, Rinaldo de Fernandes, Tércia Montenegro e outros. Panorama do Conto Cearense vai até os primeiros anos do século XXI.

OP - Quais as diferenças existentes entre o seu livro e “Evolução e natureza do conto cearense”, do Braga Montenegro, ambos voltados exclusivamente para o conto produzido aqui?
Nilto - O trabalho do Braga Montenegro é mais crítico. Ele começa falando do conto mais amplamente, contextualiza bastante. Vai avaliando, mas fala pouco dos autores. Procurei fazer como uma enciclopédia. Não que o meu seja melhor. Posso chamá-lo de trabalho jornalístico, de um leitor curioso. Não me considero crítico. Sou apenas um leitor curioso, que cutuca os autores.

OP - No Ceará, os escritores parecem surgir a partir de revistas e de agremiações. Por que isso costuma acontecer?
Nilto - Acho que isso era comum. E continua um pouco. Menos hoje, com a internet. Com ela, pouca gente se atreve a criar revista impressa. Todo mundo cria revista na internet. Muita gente me procura, pede contos. Mas as revistas impressas são poucas.

OP - Ela acaba contribuindo para que menos revistas literárias circulem?
Nilto - Eu acho que contribui, sim. Mas tem mais gente escrevendo do que lendo. Só na área da literatura, é impossível acompanhar tudo que surge. Tem muito veículo, mas está faltando leitor. Por exemplo, surgiu em Porto Alegre a Bestiário. Eu nem conhecia o editor, que me pediu ajuda. Então mandei uns 500 contos de gente do Ceará e do resto do país. Boa parte foi publicada.

OP - Por falar em revistas, fala um pouquinho sobre a criação de O Saco.
Nilto - Foi assim. Na ditadura, quando a repressão começou a ficar muito forte, os diretórios acadêmicos foram fechando. Os jovens estudantes se aproveitaram dos mimeógrafos para fazer jornais literários. Saíram de cena os jornais contra a ditadura e vieram esses outros. Foi nesse tempo que fiz Intercâmbio, jornal que dialogava com gente de todo canto. Carlos Emílio Correia Lima perguntou por que a gente não fazia uma revista mais bonita, com um cuidado maior. Os suplementos tinham desaparecido. Os dois jornais que ainda tinham suplementos publicavam apenas os consagrados, os escritores mais conhecidos. A gente sentia muita dificuldade para publicar. Aí surgiu a pergunta: quem vai bancar a revista? Procuramos o Manoel Coelho Raposo. Eu e Carlos Emílio à frente. Apresentamos o projeto pra ele.

OP - Como era a revista?
Nilto - A revista era solta, sem grampos, dentro de um saco. Apenas quatro cadernos: poesia, contos, jornalismo e imagens. Começou com 7 mil exemplares. Coube ao Raposo ser o carro-chefe. Ele tinha dinheiro e conhecia os negociantes. A cada mês saía um número. No número 7, a crise se instalou. Houve um problema com a Superbancas, a empresa que fazia a distribuição em todo o País. Eles disseram que não iam poder mais distribuir porque não valia a pena, a tiragem era pequena. Muita gente achou ter sido a censura a causa do fim da revista.

OP - Esteticamente, quais eram as grandes preocupações de vocês?
Nilto - A minha geração tinha uma grande preocupação com a forma e em não ser regional. De ser mais universal, sem esquecer o regional. Não queríamos ser regionalistas. Queríamos uma linguagem mais universal.

OP - Voltando aos cânones da narrativa curta cearense. Que lugar ocupa, por exemplo, Moreira Campos?
Nilto - O de maior contista da história cearense. Ele se dedicou àquilo. Algumas pessoas dizem que ele é bom porque se dedicou só ao conto. Mas não é isso. Eu o considero o maior contista cearense. E acho difícil aparecer outro durante um bom tempo. Moreira Campos continua sendo o melhor. Mas gosto também do Dimas Carvalho. É um dos melhores da nossa terra. Bom contista e bom poeta. E cito também o Jorge Pieiro, que lembra muito o Gilmar de Carvalho. Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro, Carmélia Aragão. Luciano Bonfim é mais revolucionário do que todo mundo. A Natércia Campos também é muito boa.

OP - Como você avalia essa produção mais contemporânea?
Nilto - A maioria dos contistas de hoje tem uma vontade de chocar maior. Mas cadê a preocupação com a linguagem, com o tema? Eu sou muito preocupado com a linguagem, a forma... A frase mal-construída. Falando especificamente do conto, se tem alguma novidade nele, se não é uma simples história, isso me agrada. Gosto dos contistas que fogem dos modelos. Aí eu anoto.

OP - Anota?
Nilto - Sim. Eu leio para encontrar defeitos. Eu sempre li e gostei de julgar o livro que leio. Leio sempre anotando. E ninguém vai querer o livro, porque está todo anotado. Tenho mais de 200 artigos sobre livros. Quando leio Machado de Assis, eu não risco nada. Leio por prazer. É assim com todos os clássicos. Mas quando o Pedro Salgueiro, por exemplo, me manda um livro, eu risco. Não costumo ler por prazer.

OP - Mas tem um prazer nesse tipo de leitura, certo?
Nilto - Tem, sim. Um prazer sádico (risos).

OP - E o que você lê hoje?
Nilto - O que é de hoje. Já li todos os clássicos. Posso até reler, mas por gosto. Tenho dez livros novos aqui em cima da mesa. Eu vou ler, esculhambar e elogiar. As pessoas me pedem pra fazer isso. Me mandam os livros. Eu pergunto: Você quer mesmo que eu comente? Não vai se zangar? Uma vez eu estava em um bar lá em Brasília. Uma moça me entregou os poemas dela e me pediu pra dar uma opinião sobre eles. Queria que eu lesse lá mesmo. Eu li. Ela disse: “E aí?” Eu respondi: “Sinceramente, não publicaria”.

OP - Voltando à questão dos “novos”. Em termos de conteúdo e forma, o que muda entre a geração atual e as que vieram antes?
Nilto - O Braga Montenegro fala de evolução do conto. Não acho que seja isso. Cada geração fala de um jeito. Na geração do Fran Martins os contos eram de dez, quinze páginas. Nos anos 70, o que mudou foi a linguagem. A linguagem do Pluralia Tantum, do Gilmar de Carvalho, é revolucionária. A estrutura frasal, a composição do conto, se você ler o Gilmar você diz que não é conto. Não tem enredo.

OP - Nos anos de 1970, ao lado do poeta satírico Glauco Mattoso, você organizou uma coletânea chamada Queda de braço: uma antologia do conto marginal. De onde partiu essa idéia?
Nilto - Na época, todo mundo se considerava marginal. Porque era todo mundo novo, sem dinheiro, desconhecido e sem condições de poder publicar. Pensei em organizar uma antologia do conto marginal aqui em Fortaleza. Na época, o Glauco andava querendo a mesma coisa. Não lembro se ele veio para cá ou se a idéia chegou até ele, em São Paulo. Mas o Glauco ficou sabendo e propôs: vamos fazer isso juntos. Você cuida do Norte e eu cuido do Sul. Não concordei com essa divisão e a gente reorganizou tudo. Queda de braço saiu em 1977. O título foi dado pelo próprio Glauco. Reuni contos de uns amigos e mandei pra ele. Foram publicados Carlos Emílio, Rosemberg Cariry, Airton Monte e outros.

OP - Pra finalizar, Nilto, como você avalia a crítica literária feita no Ceará?
Nilto - No Ceará, atualmente, não há crítica literária. O Sânzio é historiador, o Linhares é mais da academia. O Dimas Macedo elogia todo mundo. Críticos são F.S. Nascimento e Braga Montenegro. Existe a resenha, que é um artigo curto que fala bem de um livro para ser vendido. A crítica é para avaliar.
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sábado, 14 de junho de 2008

Noir (Astier Basílio)

















a cada etapa
do aprendizado
fui me deixando.
Meus olhos só abriram
arrancados.
Marca alguma me fixou:
o amanhã é minha multa,
o reverso, minha verdade.
Eu sou
o que não tem parte
com os espelhos.
Me desfazer de todos
até sobrar o que
não fui.
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quarta-feira, 11 de junho de 2008

Vou dormir (Antonio Carlos da Matta)

















Vou dormir


Quando meu Pai quiser.


Face a face, julgado.


Erros e acertos,
Sentimentos...


Minhas causas


Aparentemente perdidas.


Vou dormir


Quando meu Pai quiser.
Amanhã... Nossos rostos


Sem lágrimas nos olhos.


Juntos estaremos


Quando o Sol se puser.


Não haverá mais desertos,


Pedras no caminho, mares,


E vales a nos separar.


Tu és a divina Luz!...


Toda língua confessará.


Sobre as nuvens


Em Nova Jerusalém,


Louvores eternos


Sempre iremos cantar.


Vou descansar...


Quando meu Pai quiser.


Amanhã... Nossos rostos


Sem lágrimas nos olhos.


Juntos estaremos


Quando o Sol se puser.


Amanhã...

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domingo, 8 de junho de 2008

Dois pontos (Aníbal Beça)



No meu caminho
dou de encontro
com :
tisnados em paralelas
à espera da sentença
dialogando
com o chão


Essa conversa de pés
claudicante
tartamuda
gagueja
em tropeções
naquele que vem embaixo
rebatendo em eco
para o que está acima
pássaro preto
no telhado azul


Pelo vão desses :
de cabeça me arremesso
aventura em travessão
no sonho que não se quer
linha reta
horizontal
O . de cima leva sonhos
Epifania
O . de baixo lavra a pedra
Epitáfio
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sexta-feira, 6 de junho de 2008

Moacir Amâncio: um poeta multilíngue (Adelto Gonçalves*)




I
Um poeta que expressa seus sentimentos em vários idiomas – esse é Moacir Amâncio (1949), que acaba de reunir vários livros num só, Ata, que vem acrescido de vários poemas inéditos, com o excelente ensaio “Poesia nômade”, de Berta Waldman, que permite ao leitor acompanhar a trajetória incomum de uma obra provavelmente única na poesia brasileira, como assinala na apresentação Odile Cisneros.
Ata inclui os livros Do objeto útil, Figuras na sala, O olho do canário, Colores siguientes, Contar a romã, Óbvio, At e Abrolhos. Seu título corresponde aos múltiplos sentidos que o poeta quis dar ao livro, muito bem desvendados por Berta Waldman, desde a ata em português (registro ou registo escritural) até a preposição at em inglês, passando pelo atá em hebraico (pronome pessoal masculino e advérbio de tempo correspondente a agora em português).
É preciso que se diga que Amâncio, embora tenha surgido para a literatura nos anos de chumbo (1964-1985) e circulasse nos ambientes de esquerda da imprensa paulista na década de 70, não teve de viver obrigatoriamente no exílio por causa de suas idéias ou atos. A sua ausência no solo brasileiro, se houve, geograficamente, foi durante o tempo em que ganhou uma bolsa para estudar na Universidade Hebraica em Jerusalém já nos anos 80. Como observa Berta Waldman, o exílio de Amâncio nunca foi geográfico, mas na alma, a partir da necessidade de construir territórios de enunciação, como diz George Steiner em Extraterritorial: ensaios sobre literatura e revolução lingüística (Barcelona, Barral, 1973). E ocorreu de maneira consciente na ânsia de encontrar em línguas estrangeiras o que já não achava disponível no idioma português.
II
Amâncio estreou na literatura com a novela O saco plástico, de 1973, e, depois, surpreendeu a crítica com a prosa fragmentária e experimental de Estação dos confundidos (São Paulo, Símbolo, 1977), romance que trata da vida de Joaquim Chapeta Arruda, um deserdado da terra perdido na desumana e impessoal cidade de São Paulo.
Redator de texto conciso e preciso, Amâncio, que passou a maior parte de sua vida profissional nas redações dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, publicou ainda o livro de contos O riso do dragão (São Paulo, Ática, 1981), em que parecia já disposto a extravasar as fronteiras do gênero, deixando de lado um certo convencionalismo dos primeiros livros, embora o fragmentarismo e as quebras de frase já indicassem o caminho futuro.
Esse procedimento se acentuou em Súcia de mafagafos (São Paulo, TA Queiroz Editor, 1982), que reúne duas histórias bastante fragmentadas e com a linguagem da prosa já se misturando com a poesia, num tom meio juvenil.
O autor não renega sua obra anterior, mas, aparentemente, prefere deixá-la esquecida, pois não consta dos dados bibliográficos que aparecem em seus livros mais recentes. O que se conhece é que se rendeu à poesia a partir de 1992, quando lançou Do objeto útil (São Paulo, Iluminuras), disposto a oferecer uma nova proposta ao gênero, como se tivesse por meta escapar de uma certa linguagem exaurida pelo uso ao longo de todo um século de experimentação, repetição e diluições, para se assumir aqui o que o romancista Eustáquio Gomes escreveu na apresentação de Contar a romã (São Paulo, Record, 2001).
Essa virada, por coincidência ou não, deu-se depois que Amâncio imergiu na cultura judaica, a partir da temporada que passou em Jerusalém, que não só lhe inspirou parte dos poemas de Do objeto útil como o fez há poucos anos reencaminhar a sua vida como professor de Literatura Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ao deixar para trás o cotidiano da redação de O Estado de S. Paulo, passando a atuar apenas como colaborador de seu caderno de variedades.
Também aqui fez carreira inversa: preparou-se muito bem antes de entrar numa sala de aula como professor numa altura da vida em que a maioria dos docentes já sonha com a aposentadoria. Doutorou-se na área de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo com a tese Dois palhaços e uma alcachofra (São Paulo, Editora Nankin, 2001) em que discute as diferentes formas de se ver o Holocausto. Em poemas recentes, tem buscado um diálogo com a Ibéria hebraica de Sevilha e Córdoba.
III
Em Do objeto útil (Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, 1992), como um autêntico poeta pós-croncreto, mostra-se decididamente preocupado com a síntese, talvez como reflexo de sua atividade profissional, pois, à época dedicava-se a escrever as chamadas de primeira página de O Estado de S.Paulo, que sempre exigiram do redator um alto poder de síntetização. Veja-se este poema a título de exemplo: A lembrança da cinza/ destrói a porta./ O vento invade tudo,/ varre cantos, as frestas,/ assoalho, teto, ossos./ Deixa apenas metáforas.
Em Figuras na sala, de 1996, o autor faz uma homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), mas também paga um tributo ao poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que se valia de símbolos para expressar seus sentimentos através da sugestão, mais que da narração.
Em 1997, publica um livro de reportagens e artigos, Os bons samaritanos e outros filhos de Israel (São Paulo, Editora Musa), interrompendo a seqüência de livros dedicados à poesia. Mas logo volta com O olho do canário (São Paulo, Musa Editora, 1998), que, aliás, diferencia-se de seus livros anteriores de poesia na alternância e variedade dos ritmos, como observou Carlos Vogt na apresentação, e na linguagem elíptica que emprega.
Como gosta de jogar com a idéia de que as línguas latinas são, na verdade, um só idioma, defendendo o argumento de que determinadas emoções e idéias só caberiam adequadamente em italiano, outras em francês, em português, romeno, catalão ou espanhol, Amâncio publica Colores siguientes (São Paulo, Musa Editora, 1999) em que reuniu poemas escritos em castelhano. É o livro que marca o início de uma série de peregrinações poliglotas, que vão atingir o seu auge com Abrolhos em que várias composições estão escritas em hebraico. Esses poemas em hebraico formam um conjunto, na verdade, um livro, que foi inteiramente publicado pela revista Etc., de Curitiba.
Antes, o poeta já havia experimentado no parcialmente inédito At a construção em inglês de um universo paralelo ao português. Já em Contar a romã (São Paulo, Record, 2001) presta homenagem ao idioma de Góngora, Quevedo e Cervantes, especialmente em "Duelo de la nariz y la cara" em que transita do espanhol para o português e igualmente da poesia para a prosa poética (e vice-versa) sem perder o sentido.
IV
Professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Berta Waldman destaca para análise o poema “Àlef”, de Contar a romã, que dialoga em primeira instância com a Cabalá, mas que remete também para o conto “El Aleph”, de Jorge Luís Borges (1899-1986), em que a primeira letra do alfabeto é apresentada como um ponto no espaço que contém todos os pontos, ou seja, um ponto que agrega todos os sentidos.
A partir daí, a estudiosa sugere que o idioma hebraico tenha passado a ser, durante essa trajetória, uma das bases que sustentam a poesia polivalente de Amâncio, ele mesmo um estudioso dessa língua e também do Talmud. “Amâncio incorpora a estrutura de ambos, lançando-os como o ponto zero de sua poesia”, explica. Eis um trecho de “Álef”: Segundo Spinoza,/ lentes fabricante/ a vogal permite/ o fazer a fala/ sendo a alma dela./ Ou como entender/ a matéria simples,/ LF só rocha.
V
Antes de Ata, Amâncio lançou pela Travessa dos Editores, de Curitiba, Óbvio, em que radicaliza as preocupações estéticas de livros anteriores, desta vez, compondo um poema, "Arghvan", em inglês, a exemplo do que fizera em espanhol em Colores siguientes, quem sabe inconformado com as amarras lingüísticas e possíveis limitações do português. Esse longo poema, que melhor seria definido como um conto em versos, constitui a segunda parte do livro, mas se entrecruza com as duas outras partes.
A primeira parte, "Óbvio", que ocupa a maior parte do livro, é também um longo poema, outra vez em decassílabos. Ao largo desse poema, sente-se a presença da tradição judaica, nunca descrita, mas sugerida, de que Amâncio, hoje, no Brasil, é um dos maiores conhecedores.
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ATA, de Moacir Amâncio. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007, 584 págs. E-mail: record@record.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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segunda-feira, 2 de junho de 2008

José Alcides Pinto:1923-2008 (Nilto Maciel)







Acordei sobressaltado hoje. O telefone tocava sem parar. Imaginei cobradores e outros chatos. Era o contista Pedro Salgueiro: "Já sabe da notícia?" "Que notícia?" "José Alcides Pinto morreu". Quase morri de susto, embora esteja ciente de que todos morreremos e de que o velho poeta estava doente. "Atropelado por uma moto". Outro choque. Acidente de trânsito. Mas lembremos o poeta, contista, romancista Alcides Pinto, um dos melhores escritores brasileiros de todos os tempos. Os livros dele estão nas livrarias, nas bibliotecas públicas e particulares e devem ser lidos e relidos. José Alcides Pinto, nascido em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, Ceará (1923), tem sido muito mais poeta e romancista do que contista. Apesar disso, é também nome fundamental do conto cearense. Seu primeiro livro no gênero é de 1965, Editor de Insônia, seguido de Reflexões. Terror. Sobrenatural. Outras estórias, de 1984. Em 1997 ambos foram reeditados, sob o título Editor de Insônia e outros contos, e, como informa Pedro Salgueiro, organizador da reedição, “muitos outros contos foram resgatados do ineditismo na presente edição”.