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domingo, 10 de maio de 2009

Petrarca em Minas Gerais (Adelto Gonçalves)



I
O petrarquismo como fenômeno literário sempre esteve atrelado à existência de uma corte. Sua importação pela América portuguesa, no século XVIII, foi uma contradição à própria origem e razão da existência do fenômeno, pois nunca houve corte no Brasil até o começo de 1808, quando desembarcou no Rio de Janeiro a família real, em fuga das tropas napoleônicas que invadiram Portugal em novembro de 1807.
Isso, porém, não impediu que alguns poetas exercitassem em suas liras o espírito petrarquista, o que não deixava de ser uma contradição. Sem corte, não havia cortesão nem cortesia. Portanto, toda iniciativa de poesia cortesã poderia soar falsa. Mas os fatos não foram assim tão simples.
É o que mostra o professor Luís André Nepomuceno em A musa desnuda e o poeta tímido: o petrarquismo na Arcádia brasileira, resultado de sua tese de doutoramento em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2000, sob a orientação da professora Suzi Frankl Sperber, e que contou na banca também com os professores Jorge Ruedas de la Serna, da Universidade Nacional Autônoma do México, Melânia Silva de Aguiar, da Pontifícia Universidade Católica, de Belo Horizonte-MG, Fábio Lucas, da Universidade Nacional de Brasília, e Alcides Vilaça, da Universidade de São Paulo.
Para Nepomeceno, é razoável que o petrarquismo tenha soado falso no Brasil colônia aos ouvidos de alguns, mas é esse mesmo fenômeno literário revestido de tinturas coloniais que vai dar formato à realidade brasileira. Foi algo parecido, compara o ensaísta, ao que fizeram poetas cortesãos renascentistas do século XVI, que se sentiram na necessidade de se libertar dos moldes da vassalagem cortesã, como Ronsard e Philip Sidney.
II
O autor ressalta ainda que a ausência de uma corte na colônia não impediu que as elites portuguesas no Brasil imitassem valores cortesãos. Mas é claro que a importação de uma civilização acarreta modificações essenciais, “especialmente se há ausência de elementos básicos por parte do país colonizado”, diz o ensaista.
Além disso, o Brasil não foi colonizado por aristocratas e homens da corte. Sem contar que, de 1580 a 1640, a corte foi espanhola, permanecendo Lisboa abandonada nas mãos de mercadores burgueses, ávidos de emancipação econômica, mas pouco interessados em boas maneiras ou na tradição aristocrática. Mas, restaurada a coroa, não se pode dizer que, entre os homens escolhidos para governar as capitanias da América portuguesa, não houvesse gente de cultura refinada, da alta nobreza, que falava e lia em vários idiomas.
De uma enfiada, podemos lembrar aqui de D.Brás Baltasar da Silveira, que tomou posse do cargo de governador e capitão-general da capitania de São Paulo e Minas de Ouro em agosto de 1713, na cidade de São Paulo, e de seu substituto, D.Pedro Miguel de Almeida e Portugal, o conde de Assumar, ambos oriundos da nobreza que se destacara a partir da ascensão dos Braganças ao trono.
Depois com a separação de Minas, a capitania de São Paulo continuou a receber governadores bem preparados do ponto de vista intelectual, como Rodrigo César de Meneses e Antônio da Silva Caldeira Pimentel. De Pimentel, sabe-se, inclusive, que chegou com a família, pois há documentos no Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, que registram a sua subida de Santos para São Paulo com a ajuda de guias indígenas.
Mas é claro que, à falta de interlocutores, esses governadores nunca tiveram tempo nem condições de reproduzir o ambiente cortesão. De Pimentel, os grandes senhores paulistas — gente rústica e mestiça, que enriquecera com o trabalho de caçar e escravizar indígenas — mostravam ressentimento e queixavam-se de que os ofendia freqüentemente com a perseguição que lhes movia, inferiorizando-os “perante os visitantes e os do Reino”. Por seu lado, o conde de Assumar passaria para a História como um dos mais despóticos dos governadores que andaram por Minas, ao mandar esquartejar, sem autorização da Corte, um tropeiro reinol, Felipe dos Santos, nascido em Cascais.
Já de Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça, que governou São Paulo de 1797 a 1802, a lembrança que ficou foi a de um governador mais preocupado em atravessar os negócios dos comerciantes da capitania. E não se pode dizer que fosse homem bronco. Pelo contrário. É autor de uma memória que resgata boa parte da história da capitania de São Paulo no século XVIII em que mostra seu bom preparo intelectual.
Criado no Palácio Cunhal das Bolas, no Bairro Alto de Lisboa, onde hoje funciona o Hospital São Luís (dos Franceses), monumento da Renascença portuguesa, Mendonça era conhecido como Pilatos, apelido que herdara do pai, Diniz Gregório de Melo e Castro de Mendonça, fidalgo conselheiro de Estado e segundo general dos Açores, que, enriquecido, comprara o célebre palácio construído por um rico comerciante lisboeta conhecido como Pilatos, o que levou a população lisboeta a estender a alcunha aos novos proprietários.
III
A uma época em que tudo na América estava por fazer, não se podia esperar que esses capitães-generais pudessem ter muitas veleidades literárias, ainda que D.Rodrigo José de Meneses, filho do famoso marquês de Marialva, à época em que dirigiu a capitania de Minas Gerais no começo da década de 1780, tenha sido uma exceção, pois, apreciador das belas letras, foi incensado por poetas do calibre de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto exatamente porque permitia que esses homens de cultura freqüentassem o palácio do governo para sessões lítero-musicais.
Em seu excepcional ensaio, Nepomuceno dedica a maior parte do espaço ao poeta Cláudio Manuel da Costa, introdutor do Neoclassicismo no Brasil e uma espécie de corifeu do movimento arcádico. Embora não se saiba que tenha freqüentado a corte ao tempo em que estudou em Coimbra, Cláudio, ao retornar ao Brasil, sentiu-se sempre um exilado em sua própria terra, suspirando pelas musas do Mondego.
Nunca pôde ser um poeta de corte, mas sempre escreveu com os olhos voltado à ética do refinamento cortesão. Só que, como observa Nepomuceno, sua poesia amorosa cortês vem muito mais de suas leituras eruditas do que de sua experiência de vida. É ele o poeta tímido, inconformado com o meio inculto e selvagem em que vivia, a que se refere o título do ensaio.
De fato, o sentimento de deslocamento no espaço social teve início com Cláudio, mas se fez presente nos demais poetas do período árcade. Mais tarde, no século XIX, esse comportamento seria interpretado por críticos românticos e exacerbados pelo nacionalismo como falta de amor à terra brasileira.
Nepomuceno mostra, porém, que no século XVIII a sensação de estrangeirismo reflete apenas uma condição cultural da colônia “e o desejo de sistematização de modelos de civilização, cujo parâmetro era a ilustração pombalina, no campo da cultura e das relações sociais, e o petrarquismo neoclássico, no campo da estética”. Exigir daqueles homens que tivessem tido comportamento diferente seria cair no movediço terreno do anacronismo.
IV
Luís André Nepomuceno, nascido em 1968, é doutor em Teoria Literária pela Unicamp e professor de Teoria da literatura e Literaturas de Língua Inglesa no Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam). Ficcionsta, é autor também de A lanterna mágica de Jeremias (Rio de Janeiro, Sete Letras, 2005) e Antipalavra (Rio de Janeiro, Sete Letras, 2004). Já conquistou os prêmios Guimarães Rosa, da Radio France Internationale, e Luiz Vilela, da Fundação Cultural de Ituiutaba-MG.

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A MUSA DESNUDA E O POETA TÍMIDO: O PETRARQUISMO NA ARCÁDIA BRASILEIRA, de Luís André Nepomuceno. São Paulo: Annablume. Patos de Minas-MG: Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam), 307 p., 2002. www.annablume.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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