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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

As galhofas de José Alcides Pinto (Nilto Maciel)



 
(José Alcides e eu)

Estive poucas vezes com Alcides Pinto. Antes de 1977, quando morava em Fortaleza, só o conhecia dos livros. E de ouvir falar. Não me aproximava dele, por retraimento. Talvez nem me ouvisse. Talvez nem me cumprimentasse. Ora, eu o sabia poeta muito conhecido, desde Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e Cantos de Lúcifer (1966), sem contar as antologias de que participara no início dos anos 1950. Além de poeta de renome, romancista, contista e autor da peça Equinócio (1973). E eu? Apenas um estudante, apenas um sonhador, apenas um quase-escritor. Mas um estudante, um leitor não podia se aproximar de um escritor, pelo menos para lhe pedir autógrafo? Podia e pode. Mas cadê coragem para tanto? Como eu me enganava! Alcides sempre se mostrou muito acessível. Nunca pareceu arrogante. Dava-se bem com jovens e velhos. Com “marginais” e “acadêmicos”.


Não lembro quando o conheci de fato. Tenho alguns livros dele autografados, quando eu morava em Brasília e certamente o procurei, em Fortaleza, em 1982: O enigma (Fortaleza: Edições Quetzalcoalt, 1974), Cantos de Lúcifer (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966), Manifesto traído (Fortaleza: Lourenço Filho, 1979) e As águas novas (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1975). Autografados no mesmo dia, possivelmente. Na sua casa. Vieram outros autógrafos, outros encontros, em 1998 e 2002.

Não acompanhei sua trajetória de vida, suas “loucuras” (conheço-as de oitiva), suas excentricidades. Falavam-me dele: é doido; virou franciscano; largou o emprego público para se dedicar à literatura; comprou uma fazenda no sertão do ceará, onde só brotavam pedras e onde dorme o dragão da mitologia alcideana. Nunca o vi louco, não o vi vestido de frade, não conheci a famosa fazenda Equinócio. Vivia como pobre, numa casinha de uma vila localizada na Avenida Tristão Gonçalves (sua última morada): na sala, uma rede e uma estante com seus livros (os dos outros nunca vi. Como os meus. Talvez os tenha doado. E como conseguia fazer citações? Tudo de cor. Por isso, às vezes se confundia). Uma cama no quarto. No cozinha, um fogão, uma geladeira, uma mesa com cadeiras. E só.

Fora de casa, andava sempre bem vestido. Quem não se lembra de seu terno branco, com que se apresentava em lançamento de livro, entrega de prêmio, palestra, dele ou de outros? Magro, quase esquelético, flutuava, feito pena branca. Dava gargalhadas estrepitosas, de fazer corar magistrados e madamas, nos salões mais nobres.

O Alcides que conheci vivia em constante alegria, a galhofar com tudo e com todos. Fingia-se doido, sim. Puro gracejo. Certa tarde (não lembro o ano: se antes de meu regresso a Fortaleza, em 2002, se depois), convidou-me Pedro Salgueiro a irmos visitar Alcides. Bateu palmas, à porta. Alcides gritou: Já vou. Pela frincha da porta eu vi: ele se vestia, apressadamente. Já vou, já vou. Pedro repetiu as palmas: Trouxe, para vê-lo, um grande contista cearense. O velho poeta abriu a porta, assanhado, nu da cintura para cima, olhou para mim, me abraçou com força e exclamou: Meu grande contista Airton Monte! Ora, Alcides enxergava bem e sua lucidez não confundiria Airton comigo. Aquilo não passava de mais uma brincadeira.

Visitei-o algumas vezes, ora só, ora acompanhado. Não para conversar demoradamente, mas para vê-lo e levar-lhe alguma publicação, sobretudo a revista Literatura, na qual publiquei poemas e artigos dele, assim como uma entrevista que me concedeu em 2003. Recebia-me com alegria, como certamente acolhia outros amigos e conhecidos. Brincalhão como sempre, quando nos víamos, divertia-se muito: Só existem dois escritores bons no Ceará: eu e você. Se eu mencionava o nome de algum conterrâneo, ele sorria: Esse não sabe escrever.

Vez por outra, telefonava para mim ou eu telefonava para ele. Constantemente a brincar: Poeta (tratava assim todo mundo; pelo menos, os escritores), venha me visitar. Arranjei uma namorada, mas não tenho mais condições de fornicar. Venha me substituir. Eu prometia visitá-lo. E assim o tempo ia passando, até que um dia a outra namorada de todos nós – aquela que aguardamos, mas não queremos –, até que um dia Ela, montada numa motocicleta, o encontrou desprotegido e só, no meio de uma rua, e o levou para as núpcias eternas. Sua última galhofa, em 2 de junho de 2008.

Fortaleza, 5 de outubro de 2009.
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