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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Charmosa morbidez (Manuel Soares Bulcão Neto)

(Van Gogh)

Minha amizade com o poeta Francisco Moreira, talvez por ter se iniciado na adolescência, tinha a dureza do diamante. Discussões ásperas, trocas de impropérios e até pequenas e mútuas traições, nada a abalava. Lembro-me sempre, às gargalhadas, do dia em que apaguei um cigarro em seu tornozelo: O “Don Juan”, enquanto recitava versos eróticos de Alcides Pinto, tentava explorar com os pés, por baixo da mesa, as pernas da minha então recém-namorada. — Horas depois, eu e ele estávamos em outro bar, jogando xadrez. (Arrependido, deixou-me comer sua rainha em todas as partidas.)
Aos dezoito anos de idade, Francisco foi diagnosticado como portador de psicose maníaco-depressiva. Testemunhei seu sofrimento e suas tentativas, sempre vãs, de organizar a vida. — Durante os dois anos que antecederam seu suicídio, embora poeta talentoso, aspirava menos à consagração como tal do que ao anônimo sossego pequeno-burguês: estabilidade psíquica para se manter num emprego, casar-se, ter filhos, cultivar hortaliças no quintal de casa…

Atualmente, devido à onda do “politicamente correto”, a comunidade médica, em suas diagnoses, evita ao máximo o uso de certos termos – neurose, psicose… – que, malgrado a origem científica, converteram-se, após a assimilação pelo senso comum, em ofensas verbais, palavrões discriminatórios, estigmas. Louvo essa política, pela razão acima e também por que, em consequência do progresso da psicofarmacologia, muitas desordens mentais, antes incapacitantes e degenerativas, são hoje controláveis, permitindo a quem delas sofre uma vida “quase” normal. Caso, por exemplo, da “psicose” maníaco-depressiva, agora designada, na lista de Codificação Internacional de Doenças (CID), como “transtorno” afetivo bipolar.

Ocorre que um problema resolvido quase sempre gera outro. No caso em questão, o abrandamento da terminologia vem contribuindo para glamorizar algumas doenças que, com pouco ou nenhum embasamento científico, correntemente são associadas à genialidade.

Decerto que algumas pessoas bem dotadas em criatividade e inteligência sofrem ou sofriam de transtorno bipolar. À guisa de exemplo, cito Gauguin, Van Gogh, Virgínia Woolf, Edgar Alan Poe, Ernest Hemingway e Francisco Moreira. O conjunto desses indivíduos, entretanto, não forma amostra suficiente para se concluir que bipolaridade e genialidade andam de mãos dadas. Um estudo aprofundado certamente revelaria uma quantidade enorme de bipolares com QI mediano, ou mesmo abaixo da média, e cujos episódios maníacos, longe de torná-los mais produtivos, deixam-nos dispersivos, paralisados pela incapacidade de concentração em uma única atividade (por tempo necessário para criar alguma coisa). Em termos metafóricos: ao sentarem no banco de motorista de um automóvel, amiúde transformam este não em um carro de corrida de campeão, mas num torpedo antiposte.

O estado saudável representa a normalidade. Para muitos, infelizmente, normalidade é mediocridade. Ora, indivíduos extremamente narcisistas querem “apenas” aparecer (“O que você quer ser quando crescer?” — “Famoso”, responde Narciso, que nunca cresce), superar a mediocridade “de um jeito ou de outro”. Por isso, muitos destes, desdenhando a saúde “banal”, escolhem para si uma doença que não seja estigma — caso da bipolaridade e da síndrome de Asperger (esta, um tipo de autismo “light” que, supõe-se, estruturou o caráter de I. Newton e o de Einstein). Chegam mesmo, com muita informação e fingimento, a induzir ao erro seu psiquiatra. Cuidado, doutores!

Dedico esta crônica a Ana Miranda, que me disse, brincando, ter mania de saúde. Na verdade, ao contrário dos vigoréxicos, a Escritora é saudável inclusive no seu zelo pela saúde. — Saudável e genial!

(Crônica publicada no jornal Diário do Nordeste em 3/10/2010)
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