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terça-feira, 19 de outubro de 2010

De venenos e amores (Nilto Maciel)

(A morte de Cleópatra, de Reginald Arthur)


Pelas mãos de Clauder Arcanjo, chegou-me exemplar de Sabor de amar (Mossoró: Sarau das Letras, 2010), de Paulo de Tarso Correia de Melo. No exato momento em que o carteiro me entregou o pacote, eu conversava no meu escritório com um amigo. Não lhe direi o nome, para evitar atritos. Revelo apenas suas iniciais: AM. Adianto, porém, que não se trata de Airton Monte, nem de Airton Maranhão nem de Armando Monteiro. Rasguei o papel do embrulho, lambi a capa, folheei o volume. Curioso, AM olhava para o presente com olhos de quem comeu e não gostou. “Posso dar uma olhada nisso?” Entreguei-lhe a publicação e ouvi a primeira sentença: “O título é muito pobre”. O sangue me subiu às têmporas. Tive ímpetos de o expulsar de minha mansarda. “Ora, meu amigo, o título não é tudo”. Ele se aproveitou de minhas palavras para se fazer mais cáustico: “Se fosse tudo, os livros só teriam capa”. Senti-me ofendido. Mas ele continuou a diatribe: “A apresentação desse Clauder ainda fala em “musa inspiradora”, “profundo domínio da forma”, “inspiração dos aedos”. Tomei-lhe o impresso, com fúria, mudei de assunto e lhe ofereci veneno. Não sei se morreu a caminho de casa (não, não morreu, como vocês verão mais adiante), mas se retirou, trôpego e mudo, meia hora depois.

Paulo de Tarso nasceu em Natal, um ano antes de mim. É professor universitário, pós-graduado por universidade norte-americana. Publicou, em 2008, Talhe rupestre – Poesia reunida e Inéditos, “poemas resultantes de andanças pela Grécia e Portugal, que tentam uma reflexão sobre o fato poético, suas origens, suas implicações com o idioma português”, informa o editor nas abas. O poeta tem outras obras.

São bons os poemas desta que ora leio. Como “Arma virunque cano”, que é assim:

“Canto o passar do tempo

e flor do tempo

– a carne.

Na primavera do corpo

o verão arde.

O sol que nasce e deita

Sobre peito e prodígio.

Eu canto o dia breve.

À noite, silencio”.

Mais tarde, para saber se ainda vivia, telefonei a meu amigo AM. Li alguns poemas de Paulo de Tarso, em voz tonitruante. Eu o queria matar mesmo. O último foi “Salmo”:

“Ah, Senhor,

na hora de livrar-nos de todo mal,

livra-nos primeiro da beleza.

Da beleza do mundo, Vossa criação,

e da beleza maior do ser humano, Vossa Criatura:

tão súbita que nos embrutece,

tão forte que nos esmaga

– beleza, verdade, dor.”

Não li mais, por medo de o matar de beleza. Li para mim, até dormir. E sonhei com Cleópatra. Mordia-lhe os bicos dos seios. Sabia-me Marco Antônio, e minha língua – fúria romana – era víbora. Acordei sufocado: entre meus dentes, rasgava-se o travesseiro.

É o tropel das paixões, meu caro Paulo de Tarso. De que falava aquele imortal Bocage:

“Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel de paixões que me arrastava:

Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quase imortal a essência humana!”

Fortaleza, 18 de outubro de 2010.
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