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domingo, 3 de outubro de 2010

A revista O Saco e o Grupo Siriará (Nilto Maciel)




A história da Literatura Cearense é rica em movimentos e grupos literários, desde os primeiros tempos. E assim permanece. Depois do Grupo Clã, foi a vez dos concretistas e, em sequência, a criação do Grupo Sin de Literatura, composto de poetas e ensaístas, como Barros Pinho, Linhares Filho, Roberto Pontes, Horácio Dídimo, Pedro Lyra, Rogério Bessa e outros. No final dos anos 1970, com o fim dos suplementos literários nos jornais de Fortaleza, os novos escritores também se reuniram, não em grupo fechado, mas com o objetivo de publicar seus poemas e contos, principalmente. Surgia a revista O Saco.



Um dos mais substanciosos estudos sobre a revista O Saco é de Alexandre Barbalho: Cultura e Imprensa Alternativa: a revista de cultura O Saco (Editora da Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2000). Outros escritores também se manifestaram sobre este assunto em artigos.

Em 1976, um grupo de escritores criou O Saco, “revista mensal de cultura”, apesar de, desde o primeiro número, publicar colaborações de escritores de todo o Brasil e até do exterior.

A Revista apareceu como novidade, não somente no Ceará, mas no Brasil. Diferente das outras, as de então e as do passado. Porém, não tínhamos pretensão de fazer escola, de ser anti-acadêmicos ou revolucionários. Pois escritores mais velhos, com livros editados, também foram publicados.

O Saco não surgiu por acaso. A ideia de uma revista literária apareceu muito antes de 1976. Queríamos publicar nossas obras. Onde iríamos editá-las? Para as editoras do Rio de Janeiro e de São Paulo não existíamos. Dois anos antes, um grupo de escritores, entre eles Renato Saldanha, Carlos Emílio e eu, trocava ideias sobre como resolver o problema da falta de espaço na imprensa para a publicação de poemas e contos dos jovens. Decidiu-se organizar e publicar um coletânea de contos dos novos escritores cearenses.

Seis meses se passaram e a ideia não se concretizava. Por que não uma revista literária? Proclamou-se, então, em Fortaleza, uma reunião de escritores. Compareceram somente três: Carlos Emílio, Roberto Sérgio, que faleceu pouco depois, e eu. Seria preciso uma convocação pela imprensa. Emílio escreveu um artigo, “Chamada Geral”, publicado na Gazeta de Notícias, de 6 de julho de 1975: “Foi iniciado um movimento que revitalizará nossa literatura”. Mais adiante argumenta: “Precisamos fundar uma revista, não só de um grupo de amigos, mas, sim, de todos nós” (...) Citava alguns nomes, que depois participaram de O Saco. À primeira reunião compareceram cerca de 70 pessoas. A maioria desejava a realização de um show no Teatro José de Alencar. Espécie de feira de arte, com música, teatro, exposição de artesanato, cordel, fotografia, desenhos, livros. Sucederam-se outras reuniões, e sempre a mesma torre de babel. A revista não vingou nem o show se realizou. Decepcionado, resolvi agir sozinho. Criei o jornal Intercâmbio. Sem recursos financeiros, imprimi o primeiro número em mimeógrafo. Iniciava-se uma fase de intensa troca de ideias e impressos com pessoas de todo o Brasil. Nas grandes e médias cidades havia pelo menos um jornalzinho cultural ou literário mimeografado, herança do movimento estudantil de 1968. Em pouco tempo, eu me correspondia com escritores de todo o País. A ideia de uma coletânea de contos ressurgiu. Vivia-se o chamado boom do conto. Não mais um antologia cearense, mas nacional. Uma antologia do conto marginal. Quase todos os jovens escritores eram marginais, independentes, e os jornais, nanicos. Por coincidência, na mesma ocasião, no Rio de Janeiro, outro marginal, Glauco Mattoso, anunciava um projeto semelhante ao meu. Decidimos unir as forças para a organização da antologia, a seleção dos contos. Divulgamos notícias na imprensa (a nanica e a grande) de todo o País. Em pouco tempo, tínhamos em mão milhares de páginas de contos, semicontos, anticontos. Feita a seleção, Glauco cuidou da edição do livro: Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal, publicado somente em 1977, após o fechamento de O Saco.

(Glauco Mattoso, anos 1970)

Mesmo com o fracasso das grandes reuniões, Carlos Emílio não desistia da ideia de uma revista impressa em off-set e de circulação nacional. Intercâmbio não passava de um reles jornalzinho mimeografado, de distribuição restrita e sem a menor importância. Quem financiaria, então, projeto tão caro? Manoel Coelho Raposo e Jackson Sampaio, livreiros e escritores. Carlos os conhecia, eu não. Realizadas algumas reuniões, decidimos criar uma editora e a revista. A capa seria de saco plástico ou de papel e dentro dele viriam textos impressos em folhas, folhetos de cordel, fotografias, o diabo-a-quatro, tudo solto. Achei a coisa horrível. Finalmente, chegamos a um consenso: em vez de um saco, um envelope de papel amarelo, como capa; em vez de tudo solto, quatro cadernos (poemas, contos, artigos e desenhos) impressos, embora não colados. Riram, não me levaram a sério.

Nunca gostei das principais características da revista: a comercial, empresarial, e a relativa ao formato. Ficção, do Rio de Janeiro, seria um bom modelo. Eu pensava uma revista simples, alternativa, feita por escritores novos e sem vez no mercado editorial. Tanto insisti nessa ideia que, mais tarde, em 1991, criei Literatura.

E a tarefa de cada um em O Saco? A Raposo caberia a administração financeira. Eu e Carlos Emílio nos encarregaríamos da correspondência com escritores e da coleta de colaborações. Carlos e Jacson cuidaram da seleção final, entrevistas, viagens para contatos, etc.

O nome Saco tinha sentido amplo ou um sentido de amplitude. No entanto, não se tratava de um movimento ou de um grupo com ideias de movimento literário. Nossa pretensão era uma revista. Sem muitas restrições. Nada de bairrismo, regionalismo, nacionalismo. Nenhum tipo de “ismo”. Não queríamos um grupo, uma igrejinha, uma coisa regional. Um saco onde coubesse tudo ou quase tudo, todas as manifestações culturais e artísticas. Em razão disso, criou-se um caderno de desenhos, poesia visual, crítica literária, jornalismo cultural.

No dia 2 de abril de 1976, saiu às bancas o primeiro número. Falou-se em sucesso. Inúmeros jornais de todo o Brasil e até do exterior noticiaram o aparecimento da Revista. A festa, no entanto, duraria pouco. O último número, o sétimo, é do início de 1977. Sabíamos que sem publicidade a revista não sobreviveria. E nunca conseguíamos grandes anunciantes. Nossa revista não atingiria os milhares de leitores dos jornais diários. O primeiro número teve distribuição precária. Houve encalhe. A partir do segundo, conseguimos chegar às bancas das principais cidades do País. Como se fez isso, se a tiragem era de seis mil exemplares? Eis aí a razão principal do nosso fracasso. O Saco não podia ter distribuição nacional. Por que não concentramos nossas atividades no Ceará ou mesmo no Nordeste?

                                                             (Geraldo Markan, Rogaciano, Nilto, Guaracy Rodrigues
                                                               e Celso Almeida, num dos encontros do Grupo Siiriará)

Dois anos depois do fechamento de O Saco surgiu o “Grupo Siriará”. No dia 14 de julho de 1979, publicou-se o “Manifesto Siriará”. Explica-nos João Brígido que “a palavra primitiva ouvida ao índio era ciri-ará”. E esmiúça a formação da palavra: “Ciri, na língua guarani, quer dizer andar para trás e o selvagem, fazendo dum fato uma substância, chamou a todo câncer marítimo ou caranguejo-ciri”. E mais adiante: “ará é adjetivo significando claro, branco, alvacento, etc, etc”. O “C” primitivo de ciri transmudou-se depois no “S”’ de siriará para, em seguida, por síncope, dar Siriará. Uma revanche fonética trouxe de volta o “C” e deu Ciará. E, por último, Ceará, apesar de o povo continuar a pronunciar Ciará.

Siriará foi um grito novo contra muita coisa. E, logicamente, a favor de outras tantas. Por exemplo: “contra a ritualística de um passado literário que formal e conteudisticamente não mais representa a realidade nordestina do momento”. Não se tratava, evidentemente, de uma nova Semana de 22. Era um grito a favor da democracia, entendendo-se como tal a prática dos direitos nacionais e regionais, individuais e de classe. Não um berro regionalista, um aboio para ser ouvido no Sul e lá fora, como exotismo. “Somente dentro dessa roupagem nos permitem lançar nacionalmente nossa ‘mercadoria’”, está no manifesto.

                                                            (Da esquerda para a direita: Lucia Célia, Carlos Emílio,
                                                              Nirton Venancio, Geraldo Markan, Batista de Lima...)

As ideias básicas do Movimento eram, segundo o Manifesto: 1) Contra a ritualística de um passado que formal e conteudisticamente não mais representa a realidade nordestina do momento. Viva Graciliano, José Américo, Zé Lins do Rego, O Quinze, de Rachel, João Cabral, Grupo Clã...Viva. Como lição, roteiro, experiência. Superação, não supressão. A seca e o sonho continuam. A favor de um texto terra (conteúdo); de um texto mestiço (forma); de um texto Siriará (intenção e linguagem). 2) Contra o colonialismo interno do Sul e condenação regionalista da literatura nordestina. A favor de uma literatura de vassalagem, nordestinagem, inferioridade. Pensar e sentir o Nordeste, território à parte. 3) Contra modelos e formas de pensar e escrever importados – impostados, impostos – pastagem alienante da culturália tupiniquim mal pensante. A favor de uma literatura brasileira brasílica. Autóctone. Sem totens nem tabus. Sem “favor referencial” à cultura solene mamãe Europa e adjacências e/ou do executivo caubói do Arizona. O universo situado a partir de um discurso e uma linguagem crítica que refletiam a nossa própria situação/condição histórica. Pensar a partir de um discurso e uma própria linguagem. Da literatura. Da história. Da sabedoria cosmo-nativa. 4) Contra toda forma de opressão, de repressão política e/ou cultural. Fora, fuuu – a máscara policialesca da moral e dos bons costumes (literários). Fora a censura Planaltina. Fora, fuuu – todas as patrulhas. E todos os pulhas ideológicos e literários. Queremos a verdade e a sinceridade. Ainda que tarde. Pra tudo rimar com Liberdade. A favor de uma literatura de combate, de questionamento, de indagação. De si mesma. Do indivíduo. Da sociedade. Do Brasil D.R. isto é, Depois de Rosa. Aqui e sempre. AVE, PALAVRA”.

Assinaram o Manifesto os seguintes escritores: Adriano Spínola, Airton Monte, Antônio Rodrigues de Sousa, Batista de Lima, Carlos Emílio Correa Lima, Eugênio Leandro, Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral, Floriano Martins, Geraldo Markan Ferreira, Jackson Sampaio, Joyce Cavalcante, Lydia Teles, Márcio Catunda, Maryse Sales Silveira, Marly Vasconcelos, Natalício Barroso Filho, Nilto Maciel, Nirton Venâncio, Oswald Barroso, Paulo Véras, Rogaciano Leite Filho, Rosemberg Cariry e Sílvio Barreira.

Além do manifesto, vastamente publicado, o movimento editou livros; promoveu um seminário, com a leitura e a discussão de textos dos membros; participou de encontros com estudantes; publicou um revista-antologia e um suplemento especial no jornal O Povo, edição de mais de vinte mil exemplares, criteriosamente elaborado, com fotografias, biografias, depoimentos e textos de todos os seus integrantes, além do manifesto; encenou peças. Surgiram propostas como a veiculação de um jornal e a organização de uma antologia de escritores cearenses.

Na opinião de Dimas Macedo, no ensaio “Literatura e Escritores Cearenses” (Crítica imperfeita, Imprensa Universitária, Fortaleza 2001), o Grupo Siriará não deixou “uma contribuição significativa, enquanto movimento de renovação estética literária. Foi uma atitude muito mais do que um grupo literário com disposição de aglutinar uma proposta concreta de ação ou coisa que o valha. Mas é indiscutível também que do Siriará provêm alguns dos melhores escritores cearenses da década de 1980 com raízes num período bem anterior, que retorna à criação da revista O Saco, uma das mais originais publicações brasileiras das últimas décadas”.
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