Translate

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sala de estar (Simone Pessoa)

(La Venus del espejo, Diego Velázquez)


Na sala ornada de móveis antigos, uma estante de madeira escura com vitral fosco e jateado repleta de livros empoeirados. Retratos esmaecidos de antepassados na parede. No sofá aveludado, o casal septuagenário ouve suas músicas de época: Orlando Silva, Carlos Gardel, Vicente Celestino, Chiquinha Gonzaga, Amália Rodrigues. No canto, uma vitrola, há muito não utilizada, também prestigia a música emanada de seu descendente, o toca-CD. O idoso se põe a cantar, acompanhando a melodia nostálgica. A mulher se divide em observar o marido e preencher sua revista de palavras cruzadas. Pela veneziana, se entrevê o jardim onde se sobressaem papoulas e bougainvilles.

Nesse corre-corre em que vivemos, poucas oportunidades temos para presenciar cenas caseiras como essa. A sala de estar moderna costuma ser clara e livre das poeiras do tempo. Livros de capas duras são postos sobre a mesa de centro como bibelôs intactos.

O jogo de luzes é acionado somente em dia de festas, cada vez mais esparsas. Até a tevê anda esquecida. Raramente se assiste a um filme ou se recebe uma visita para justificar o sofá. Os quadros, já calejados pela indiferença, continuam empedernidos. Peças de aço escovado combinam perfeitamente com a ambientação contemporânea, arrojada, fria.

Quando os anos passarem para mim, gostaria de me ver de cabelos grisalhos, sentada no sofá, um livro aberto no colo, o olhar passeador entre um poema escrito e a poesia latente do momento. Uma de minhas mãos se entrelaça nas mãos cálidas de meu velho. Pequenas caixas de som suspensas repercutem a voz de Caetano, Belchior, Fagner, Nana, Calcanhotto. Nesse clima, eu e meu par nos entretemos, enquanto o tempo, cúmplice, se compraz. Na mesa de canto, porta-retratos expõem fotos de família.

Entre elas, fotos dos filhos ainda crianças e do pequeno poodle branco - registros de um passado cheio de graça. Quiçá, voando contra o tempo, os filhos então adultos aterrissem vez ou outra na minha sala de estar. Ao observarem os móveis fora de época e outros resquícios do tempo, sentirão a distância dos anos que nos separam. Mas, ao se depararem com a simplicidade da cena doméstica que os pais protagonizam, descobrirão o autêntico sentido de estar numa sala de estar.
/////