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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Homem realizado ou satisfeito? (Nilto Maciel)

(Nilto – o primeiro, sentado, à esquerda – nos jardins da Reitoria da Universidade Federal do Ceará, ao lado de Jorge Tufic e Soares Feitosa, sentados, e, em pé, Airton Monte – o primeiro, à direita – e outros escritores)



Acordei satisfeitíssimo. E pensei: o que é um homem realizado? Segundo o Dicionário Houaiss, “realizado” é adjetivo da categoria “regionalismo”, no Brasil, e significa “que conseguiu atingir seu(s) objetivo(s), cumprir sua(s) meta(s)”. Portanto, realizado e satisfeito são sinônimos. Não para mim, neste momento. Explico: Todo dia ouço a velha pergunta idiota feita às crianças: o que você quer ser quando crescer? Os meninos respondem logo: jogador de futebol. As meninas não titubeiam: modelo. Meio século atrás, alguns de meus amiguinhos se encabulavam e demoravam a responder. Outros se empertigavam, sorriam e atiravam besteiras: vou ser maquinista de trem; quero ter um caminhão Chevrolet bem bonito; se não for padre, serve o Banco do Brasil; se a Igreja ou a casa do dinheiro não me quiserem, serei general do exército de salvação nacional. Ninguém queria ser Bach ou Alberto Nepomuceno, Cervantes ou Alencar, Van Gogh ou Antônio Bandeira.

Acordei hoje muito satisfeito. E pensei nos adultos, de meu tempo de menino, que se diziam homens realizados. Eu não conhecia os mendigos que pediam naco de farinha, os lavradores dos pés-de-serra, os tísicos que tossiam a vida. Esses só pude olhar de perto muito mais tarde. Os homens bem-sucedidos arrotavam depois das refeições, palitavam os dentes, limpavam os bigodes brancos, alisavam as panças. Diante de suas esposas, exalavam frases decoradas: sou realizado porque me casei com uma santa. Longe delas, marcavam encontros secretos com empregadinhas domésticas, iam, sorrateiramente, aos cabarés (casas de prostituição) ou visitavam, em sítios ou arrabaldes, suas concubinas. Homens realizados tinham casas de alvenaria, com mais de uma janela, posses, terras, automóveis, muitos filhos, dentes de ouro, cinturões grossos. Contribuíam para as obras pias da Igreja e se benziam quando falavam do perigo do comunismo ateu.

Não sou um homem realizado. Se fosse homem feito, para que me realizar? Ora, se me realizar, terei chegado ao topo do Everest, à beira do abismo, ao fim da picada. Certamente Camões sonhava outros lusíadas; Dante, outros paraísos; Shakespeare, novos otelos. Não, não sou satisfeito comigo, nem com o mundo. Tudo está para ser feito, realizado. Mesmo assim, acordei satisfeitíssimo. Principalmente porque existiram as mulheres com quem dividi o prazer da carne. Porque alcancei minha alforria mental, libertei-me das muralhas de Jericó, da moral puritana, das crenças infantis de paraísos perdidos. Escrevi minha história em muitos livros. Mais de trezentos contos, em dez volumes. Nove romances. É certo que quantidade não é atestado de grandeza. Pois Augusto dos Anjos só deixou um livro. Sei disso. Mas estou (hoje) satisfeito comigo. Se tiver tempo, escreverei mais e melhor. Não plantei árvores, embora me dissessem: o homem, para se realizar, precisa ter filhos, plantar árvores e escrever livros. Também tive filhos. Contribuí para a perpetuação da espécie ameaçada de extinção por ela mesma. E transmiti a quatro criaturas o legado da nossa miséria. Ora, posso ter gerado monstros como os pais de alguns de nossos irmãos. Que culpa tiveram as mães de Hitler, Mussolini, Stalin? No entanto, quanto mal fizeram aos homens! Pobres mães! Pobres netos! Pobres de nós que herdamos os campos de concentração, a moral cristão, judaica, muçulmana, religiosa. O ódio aos pobres e aos ricos, aos homossexuais e aos que nasceram diferentes da maioria. Não quero limpar o bigode branco com o lenço ou o guardanapo de linho com inscrição romântica. Não quero o casamento até que a morte nos separe. Não quero me casar com santas que sentem nojo das prostitutas porque são pecadoras. Quero marcar encontros com empregadinhas, sem me esconder de ninguém, do guarda-noturno, do padre escondido atrás da porta da igreja, da beata que fiscaliza a vida alheia pela brecha da porta. Não quero dentes de ouro, quero dentes para morder a carne do pecado. Não contribuo para obras pias de igrejas pentecostais e pré-apocalípticas de pastores que decoram a Bíblia e enchem os bolsos das moedas dos pobres.

Sou um homem satisfeito com a Arte. Escrevo todo dia, leio todo dia. Não troco Chopin por nenhum carnaval. Não substituo Machado por álbuns de família. Adoro os noturnos e as capitus. Acordo cedo para ver o sol queimar o chão, para me ver dentro do espelho (embora me saiba feio), para esperar a visita (esperada ou inesperada) das moças de corpo e sangue expostos ao meu vampirismo de esteta. Todo dia converso com minhas quatro filhas. Todo dia me correspondo com meus amigos, que são centenas. Não falarei deles, porque eles falam de mim a toda hora, na Praça do Ferreira, no bar do Assis, no Ideal Clube, no clube do Bode, no shopping Benfica, na Unifor, na UFC, na UECE, nos campus universitários e campos de carvalho. E estão quase toda noite em minha casa, a fuçar meus livros raros, a me pedir prefácios e resenhas, a me fotografar e filmar, a fazer perguntas enigmáticas. Mas, como santo de casa não faz milagre, nenhum deles me chama de grande escritor, contista fabuloso, romancista de primeira linha, essas coisas que diz todo leitor sabido. Sei, porém, que se sentem próximos de quem se viciou em Poesia. E, para não se sentirem melindrados, farei citação de seus nomes: Airton Monte, Alves Aquino (O Poeta de Meia-Tigela), Astolfo Lima, Cândido Rolim, Carlos Emílio, Carlos Nóbrega, Carlos Vazconcelos, Carmélia Aragão, Clauder Arcanjo, Dimas Carvalho, Felipe Barroso, Inocêncio de Melo Filho, Jorge Pieiro, Luciano Bonfim, Manuel Bulcão, Mário Sawatani, Máxima Madalena, Pedro Salgueiro, Raymundo Netto, Robson Ramos, Tércia Montenegro e Urik Paiva. Outros, que admiro muito como pessoas e escritores, não me visitaram por falta de oportunidade (convite?), mas têm por mim amizade e admiração. Nada me devem e, por isso, não precisam escrever artigos a respeito de minha literatura (mas, alguns o fizeram). Refiro-me a Aíla Sampaio, Ana Miranda, Barros Pinho, Batista de Lima, Dias da Silva, Dimas Macedo, Eduardo Luz, Gilmar de Carvalho, Jorge Tufic, José Lemos Monteiro, Linhares Filho, Lourdinha Leite Barbosa, Natalício Barroso, Pedro Henrique, Roberto Pontes, Sânzio de Azevedo, Soares Feitosa e mais alguns habitantes superinteligentes de Fortaleza.

A maioria de meus amigos, porém, está bem longe de mim, em Curitiba, Santa Cruz do Sul, Teresina, Poços de Caldas, Salvador, Jaguaruana, São Paulo e por este Brasil afora. Um é Chico Miguel de Moura, amante de Teresina, poeta feito do mais puro ouro da linguagem. Outro é Emanuel Medeiros Vieira, saído do Desterro, ido para Brasília, agora abraçado aos orixás da Bahia. O nunca visto Dércio Braúna, que escreve como um possuído pelos espíritos. O vetusto e lúcido Caio Porfírio Carneiro, perdido no feérico mundo cosmopolita da paulicéia. O baixinho Enéas Athanázio, viajante real e imaginário, sempre a partir do porto de Camboriú. O goiano Salomão Sousa, que se instalou em Brasília ainda menino para escrever poesia. Tantos e tantos, de todas as idades, de todas as cidades, que eu levaria um ano a lhes citar os nomes. Muitos deles nunca vi. Mas também nunca vi meus avós, Homero, Dante, Pessoa.

Alguns me exaltam as qualidades em resenhas e artigos. Como Francisco Carvalho, que escreveu isto: “Nilto Maciel consolidou seu prestígio como um dos melhores ficcionistas brasileiros da atualidade”. E esta outra frase: “Nilto Maciel é atualmente, sem nenhum favor, um dos nomes mais representativos da moderna literatura brasileira”. E mais esta: “Nilto Maciel é, sem dúvida, um mestre consumado do conto moderno. Não apenas pelo requinte no uso de todas as gradações e alternativas morfológicas da escrita literária. Como também, e, sobretudo, pela maneira engenhosa com que disserta sobre tendências e conflitos da subjetividade que navega ‘a leste da morte’”. Haja coragem para publicar opiniões desta natureza. Porque não são poucos os gênios literários brasileiros que frequentam os jornais, as revistas, as antologias, as listas dos dez melhores, dos cem melhores do século, as academias, os simpósios, os seminários, os grandes prêmios e se sabem de raça superior, porque escolhidos por jornalistas, críticos, doutores em literatura, acadêmicos federais. Mas Francisco Carvalho, que não faz parte de patotas, está acima – muito acima mesmo – dessa maioria de mediocridades engalanadas e ousa contrariar o Código Canônico da Literatura.

O grande poeta não está isolado, porém. Outros pensam como ele. Liana Aragão: “Nilto Maciel é um dos grandes nomes da prosa contemporânea, ainda que negligenciado pela mídia e ausente das prateleiras das grandes livrarias”. Adriano Espínola: “Nilto Maciel é outro contista vigoroso e surpreendente da nova geração. (...) inscreve-se ele no que de melhor temos no momento em matéria de contos no Brasil”. Caio Porfírio Carneiro: “Nilto Maciel é um desses escritores que nascem feitos e irão até à morte em ascensão constante”.

Os maledicentes dirão: Assim não vale, porque são seus conterrâneos. Vale, sim. Pois falam isso porque me leram, não porque são cearenses. Além do mais, desmentem o ditado do “santo de casa”. Por outro lado, há os de fora do Ceará. Tanussi Cardoso: “As Insolentes Patas do Cão é um instigante e belo livro de contos que coloca o seu autor, Nilto Maciel, no rol dos grandes escritores deste país”. Nicodemos Sena: “Nilto Maciel (...) é, sem dúvida, um mestre da nossa literatura de ficção, que merece ser lido por todos os brasileiros”. João Carlos Taveira: “Portanto, para a obra de Nilto Maciel, posso usar tranquilamente as palavras finais do prólogo de Jorge Luis Borges a A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares: “Não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la de perfeita.” Fernando Py: “Hoje, Nilto Maciel é o escritor por excelência da narrativa curta brasileira, com seus textos enxutos, nos quais mescla com felicidade o bom-humor e o mistério, o picaresco e a carnavalização do cotidiano”. Francisco Miguel de Moura: “Nilto Maciel é um dos maiores escritores deste país”. Silvério da Costa: “Há tempos vinha dizendo para mim mesmo que o Nilto Maciel era um dos maiores contistas brasileiros da atualidade. Minha dúvida consistia em saber se existia no Brasil alguém que o superasse na difícil arte de narrar histórias curtas”.

Os maledicentes dirão: Assim não vale, porque são seus amigos. Vale, sim. Pois escreveram elogios porque me leram, não por serem meus amigos. Há sempre uma desculpa para os que não querem ver o Sol. Lembremos a fábula do lobo e do cordeiro: “Por que turvas a água que bebo?” Não sou cordeiro, nem lobo. Não estou falando de vítima e opressor. Estou falando de argumentos. Para os fingidos, os mentirosos, os pícaros há sempre um argumento.

Alguns serão mais maldizentes ainda: Esses nomes citados não são luminares da crítica. Se não são luminares, quem são os luminares? Os que ditam pautas de jornais e revistas? Os que indicam nomes para as listas dos dez mais? Ora, os cardeais só leem os nomes consagrados pela mídia literária (ou comercial), enquanto meus amigos conhecem os nomes indicados pela mídia, mas também sabem de Adriano Espínola, Caio Porfírio Carneiro, Chico Miguel de Moura, Fernando Py, João Carlos Taveira, Nicodemos Sena, Tanussi Cardoso (para citar apenas alguns nomes dos acima mencionados), porque outras dezenas de grandes poetas e prosadores brasileiros estão fora das listas elaboradas por doutores ou lobistas que desconhecem a literatura publicada por pequenas editoras.

Muitos outros se debruçaram sobre meus livros e os comentaram em resenhas e artigos: Adelto Gonçalves (que é doutor), Angelo Manitta (escritor e editor italiano), Artur Eduardo Benevides, Astrid Cabral, Carlos Augusto Silva, Carlos Augusto Viana, Celestino Sachet, Chico Lopes, Di Carrara, Donaldo Schüller, Erorci Santana, Foed Castro Chamma, F. S. Nascimento, Henrique Marques-Samyn, Jaime Collier Coeli, Laene Teixeira Mucci, Nara Antunes, Nelly Novaes Coelho, Paulo Krauss, Paulo Nunes Batista, Ronaldo Cagiano e Valdivino Braz. Também os falecidos José Alcides Pinto, José Luiz Dutra de Toledo e Sérgio Campos, aos quais rendo homenagens. Nenhum deles me deve ou devia favores. Escreveram porque são escritores, são livre-pensadores, não têm compromissos com editoras, universidades, jornais.

Minha amizade com eles é real, realizada, feita, construída ao longo de livros e meses, cartas e temporais. Não são homens realizados. Não conseguiram ser maquinistas de trem, donos de caminhões chevrolets, terras, teres e haveres. Não chegaram a padres e muito menos a vestir farda. Nem fardões. São apenas escritores, como eu. Estou satisfeito comigo. Escrevi mais de duas mil páginas, livres de todos os fanatismos, de todos os moralismos. Acordo todo dia satisfeitíssimo porque sei da fartura de minha imaginação, de meu humor, de minhas dores, que são de todos. Por isso me pergunto: o que vou ser quando crescer? Não devo crescer mais. Embora ainda estude grego e latim, ainda leia os poetas latinos, ainda ouça Mozart, ainda me extasie diante de corpo feminino, ainda escreva crônicas para brincar comigo e com quem quiser me conhecer. Devo, sim, sair de férias e me preparar para o carnavalha de 2011.

Fortaleza, 8 dezembro de 2010
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