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quinta-feira, 17 de março de 2011

Sarapalha (W. J. Solha)



Fui palestrante num dos Seminários Internacionais Guimarães Rosa, na PUC Minas, e, a partir de então, comecei a receber e-mails assinados com codinomes tirados da portentosa galeria de personagens do escritor mineiro, tipo “Quelemém”, “sié Marques”, “Manuelzão”, “Fulorêncio”, “Zé Bebelo” ou “Miguilim”, com mensagens sempre marcadas por enorme entusiasmo pela obra rosiana. Aí um certo “Augusto Matraga” me tornou sócio da AAMCGR – Associação dos Amigos do Museu Casa de Guimarães Rosa, de Cordisburgo; uma tal de “Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins” me encomendou – e pagou – um artigo sobre a geografia do conto “Sarapalha” para a revista Sagarana de Cultura e Turismo; um esquivo “Dr. Meigo de Lima” – ciente de que eu estava de férias na UFPb – me mandou passagem de ida e volta para aquela área, e – lá – um guia, contratado por um “Pacamã-de-presas”, me embarcou numa canoa do Rio Pará até a fazenda Aurora (que seria a Sarapalha do primo Ribeiro, na estória). Daí por diante não ocorreu um evento vinculado ao Grande sertão: veredas, Corpo de baile ou Tutaméia para o qual eu não fosse convidado por um “Riobaldo”, “Malinácio”, “Quipes” ou “Guirigó”, fosse onde fosse. Na II FLIP – Festa Literária de Parati, que aconteceu em 2004, quando vi o grande Davi Arrigucci Jr. ser ovacionado durante o discurso de abertura ao dizer que Guimarães Rosa foi um dos maiores escritores do Século XX, à altura de Faulkner e James Joyce, eu, sentado numa das primeiras filas da platéia, voltei-me e desconfiei que todos aqueles que o aplaudiam de pé eram todos meus – não sabia por que anônimos – correspondentes e patronos. Como GR é chamado por muitos de brazilian Joyce (o que não deixa de humilhar o elogiado, colocando-o num segundo escalão internacional, o dos seguidores locais do irlandês que pipocaram por um bom tempo em toda parte), o delírio da claque foi ainda maior quando o orador garantiu:

– “O projeto de escrita de Guimarães Rosa NÃO É JOYCEANO!!!”

E como, por causa de uma incrível série de desencontros, eu jamais vira a peça “Vau da Sarapalha” do Luiz Carlos Vasconcelos, baseada no conto contido no Sagarana – imenso sucesso no Brasil e no exterior –, recebi de “Alarico Totõe” os meios para ver o espetáculo... no Barbican Pit Theatre, de Londres! Claro que, enquanto eu aplaudia os atores do Piollin depois da apresentação, de pé como todo mundo, o pensamento inevitável me ocorreu: “Por que estou recebendo isso?”. Nada, entretanto, me preparou para o impacto que tive ao receber a encomenda pelo SEDEX, um mês depois, remetida por “Joca Ramiro”, de endereço também fictício – Avenida “Nhanva”, 666, Belo Horizonte: abri a caixa de papelão dos Correios, vi o par de luvas de plástico em cima de um embrulho, vesti-as, tirei o lacre do invólucro... e senti o sangue gelar ao ver o velho livro encadernado em couro vermelho, o título Contos, junto do pseudônimo “Viator”. “Que loucura!”, murmurei enquanto girei a capa e dei umas incertas nas 447 páginas de papel relatório datilografadas em espaço dois, cópia carbono – a primeira versão do Sagarana, entregue por Guimarães Rosa à Livraria José Olympio, para participar do “Prêmio Humberto Campos”, exatamente às cinco e meia da tarde do dia 31 de dezembro de 1937. “Meu deus: todo mundo – inclusive Sônia van Dijck - tinha esta via e os originais manuscritos como perdidos... e aqui estou eu com ela!!!” Agitado, abri o segundo pacote, que vi embaixo do primeiro, e que era uma outra caixa, mais antiga, dentro da qual estavam ( “Não é possível!!!” ) vários cadernos de cem folhas em que o mestre escrevera aquele seu livro a lápis “durante sete meses de exaltação e deslumbramento, depois de alguns dias fechado no quarto, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, revendo paisagens do sertão e aboiando para um gado imenso”. Reconheci-lhe – com meus olhos transbordando de lágrimas que me desceram pelo rosto – a letra inclinada, caprichada, no título provisório da coletânea: Sezão (que ele sonegaria à cópia datilografada), o volume ainda homônimo do conto – evidentemente o preferido pelo autor naquele momento – que seria, depois, o “Sarapalha”.

“Por que vocês me mandaram esse tesouro?!” – eu falei sozinho, escandalizado. “Por que não me pagaram para eu ir conhecê-lo em São Paulo, se é que ele vem de lá? , por que não me facilitaram os meandros da USP, se os cadernos pertencem a ela?”. Era como se, simplesmente, estivessem me mostrando o poder que tinham. Não havia nenhuma mensagem acompanhando a remessa. Fui ao computador, abri o outlook, procurei, entre os e-mails, algum assinado por qualquer dos “amigos de GR”, acionei o “Responder” e digitei a toda velocidade: “O que, afinal, vocês querem de mim... além de ensaios, conferências e da paixão por Guimarães Rosa?”.

Resposta imediata de “Garanço”:

– “Examine o material com calma”.

– “Mas isso é crime! Vocês o surrupiaram do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, por certo!”.

Resposta de “Otacília”:

– “Conhece a experiência de Stanley Milgram, feita em Harvard, nos anos 60?”.

– “Não”.

Tentativa de esclarecimento de “Nhão Virassaia”:

– “Viu o filme ‘Six Degree of Separation’?”.

– “Não”.

“Leite-de-Sapo”:

– “Nós apenas colocamos em prática o aprofundado estudo das redes sociais, de Milgran, que chegou à conclusão de que, em média, apenas seis pessoas nos separam de alguém que poderá conseguir, para nós, coisas aparentemente impossíveis. É comum, entre os cinéfilos daí de João Pessoa, por exemplo, alguém perguntar: ‘Qual a ligação entre Zezita Matos e Climt Eastwood?’”.

– “Zezita Matos!” – eu disse, rouco. – “O cara deve ser da Paraíba ou ser paraibano, para saber quem é ela”.

E ele:

– “O outro cinemeiro, se for, de fato, expert, vai dizer: ‘Bem: Zezita trabalhou com o irmão, Everaldo Pontes, em A Canga. O Everaldo Pontes – ator do ‘Vau da Sarapalha’ – trabalhou com José Dumont (também paraibano) em ‘Abril despedaçado’. Zé Dumont trabalhou com Kathy Bates no ‘Brincando nos Campos do Senhor’, rodado na Amazônia. Kathy Bates trabalhou com Jessica Tandy em ‘Tomates verdes fritos’. Jessica Tandy trabalhou com Morgan Freeman em ‘Conduzindo Miss Daisy’... e Morgan Freeman trabalhou com Climt Eastwood em ‘Os imperdoáveis’. Bom, o que queremos lhe dizer é que esses documentos lhe foram confiados – a título de empréstimo – por um dos nossos que pertencem ao quadro do IEB. Faça o melhor proveito deles – sem precisar se afastar da Universidade (pois sabemos – pela sua reitoria – que você não tem tempo disponível para viajar agora) e devolva-os à USP, colocando como remetente ‘Titão Passos’”.

O coração disparado, respiração um tanto difícil, as mãos nas luvas de plástico, voltei aos preciosos manuscrito e datiloscrito, ambos ainda com ortografia antiga (ela só mudaria em 43), o segundo com as páginas numeradas a nanquim no canto superior direito (para organizar o conjunto de histórias soltas), numeradas a grafite no canto inferior direito (para ordenar os fólios de cada narrativa). “A hora e vez de Augusto Matraga” ainda constava, ali, como “A opportunidade de Augusto Matraga”, e “São Marcos” ainda era “Envultamento”. Somente com aquela surpreendente remessa pude ler “Bicho máu” (com acento no a), “Questões de família” e “Uma história de amor” – que cairiam fora na primeira edição do Sagarana em 46 – além do posfácio – que também seria eliminado na obra editada. Chamava-se “Porteira de fim de estrada”. Li nele, faminto de informações:

– “‘Sezão’ e as outras histórias companheiras foram começadas e acabadas no formoso anno de 1937, precisamente entre 20 de Maio e 4 de Dezembro, e mais ou menos na ordem em que estão seriadas aqui”.

Mal despachei o material de volta para o IEB (como se sua devolução em perfeito estado autorizasse os “amigos de GR” a prosseguirem a operação), recebi outra remessa pelo SEDEX, agora de “João Concliz”, que residiria numa Rua “Ana Duzuza” de Santos, São Paulo. Aberta a caixa, luvas de plástico nas mãos, abri um volume parecido com o datilografado anterior, mas agora encadernado em couro negro. Na lombada, a mesma data: 1937. Vi que – entre as alterações feitas naquele texto que “repousara sete anos” (segundo o próprio GR) – estavam a troca do título da coleção – agora, sim – Sagarana; a mudança ortográfica (via-se a trabalheira para substituir todo y e ph por i e f, cortar toda consoante dobrada), além da eliminação do posfácio e da passagem do conto “Sezão” – ali já chamado “Sarapalha” – do primeiro para o terceiro lugar na ordem do livro. Aquilo confirmava o comentário posterior, de Guimarães Rosa, de que aquela não estava entre suas estórias preferidas.

Se qualquer making of me fascina, imagine o que senti vasculhando a intimidade da criação de GR., num processo de crítica genética que me lembrou a mostra “Vermeer and the Delft School”, do Moma, produzida para revelar o meio em que a obra do maravilhoso pintor holandês setecentista floresceu. Algo tão intensamente cerebral e poético quanto ler Virgílio comparando o rubor de Lavínia, na “Eneida”, “com o de um lírio branco entre rosas”.

Na primeira versão, tanto a manuscrita quanto a datilografada, por exemplo, a estória começava dizendo: “Ali, na beira do Pará”, mas agora estava: “Ali, na beira do rio Pará” (a palavra rio acrescentada com tinta preta.), o que evidenciava a compreensão de que o texto anterior poderia remeter o leitor ao estado do Pará. E “É aqui, perto do vau do (vi que ele tirou ‘ponte velha’ e colocou) Sarapalha: tem uma fazenda denegrida e desmantelada”. Sorri ao perceber a conseqüente alegria do autor pelo achado sonoro, pois lá estava o título “Sezão” agora riscado em vermelho e, em seu lugar: “Sarapalha”, em preto!

Em alguns contos vi pedaços de papel escritos a máquina em primeira via e colados sobre os originais em carbono. Havia inúmeras alterações de pontuação, muito enxugamento drástico, como na frase “antes não tivesse querido falar em nome guardado”, que passou a ser “antes não tivesse falado no nome dela” . Vi as rasuras na descrição da cheia que traria a maleita para a fazenda, alterações com as quais o rio Pará deixou de “inchar” para “crescer” e, em vez de “desinchar”, “minguou”.

– “Por que ele teria feito isso?” – escrevi aos “amigos”. – “Perdoem-me o atrevimento, mas – salvo melhor juízo – seria mais eficiente o rio, doente, ‘inchar’, como no original. Certo: mais adiante GR diz que o baço do primo Ribeiro... incha por causa da malária, pelo que, evidentemente, evitou uma repetição infeliz. Mas...”.

– “Também não concordo com essa modificação” – disse-me “Sangue-de-Outro”. – “Você está certo: com o rio a palavra funciona melhor. Arranjasse um sinônimo para falar na anomalia no baço do Ribeiro...”.

Estranhei a reação num dos “apaixonadíssimos aficionados”, num dos “amigos de GR”.

– “Vocês estão certos” – disse-me um e-mail de “Mirabô de Melo”.

– “Essa será uma das primeiras alteração que faremos” – acrescentou “Fafafa”.

– “Ei, ei, ei!, que história é essa?!” – repliquei surpreso.

– “Você ainda não sabe?” – espantou-se “Mão-de-Lixa”.

– “O que é que não sei?” – respondi angustiado.

As mensagens pararam, continuei trabalhando. Vi que GR trocara “o sol sobe” por “o sol cresce e amadurece”. Ótimo. Os primos Ribeiro e Argemiro, no febrão terrível, passaram a ser, de “dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborcado, que se aquentam ao sol” para ser eles mesmos... que se “quentam ao sol”. Na descrição do mosquito da malária, não mais “a tromba repleta de esporozoítos”, mas de “maldades”. No baço de Ribeiro não mais “duas colméias de hermotozoários”, mas de “bichinhos maldosos”.

– “É o médico cada vez mais dando espaço para o escritor!” – comentou um inesperado “Zé Câncio”.

– “Mas esses cortes não me parecem bastar” – eu disse “‘criando asas’, ‘botando as unhas de fora’ – eu seria pela amputação quase total, no conto, do trecho longo em que ele fala do doutor que veio explicar para o povoado de Vilelas em que consistia a maleita, mandando que todos fugissem dali, coisa que nem Ribeiro nem Argemiro fazem, liquidados pela traição de Luísa, que se fora embora com o vaqueiro”.

– “Concordo com você” – respondeu “Fancho-Bode”.

É verdade que se não tivesse exercido a medicina por aquele breve período, GR não se tornaria GR, nem eu jamais teria estado na região não fosse a mando dos “amigos”. Caminhei nas pegadas de Guimarães Rosa nas perambulações forçadas por sua profissão antes de sua partida para a carreira diplomática. Passei vários dias em Tapera do Arraial, a Vilelas da estória. Apurei que toda aquela área do Rio Pará estava infestada pela malária há já quatro anos quando ele chegou pra trabalhar lá, em 31. A fazenda Sarapalha – Aurora – na época esteve nas mãos de dois arrendatários que perderam toda uma grande safra de arroz por não haver quem a colhesse, por conta da maleita. Foram os modelos para os primos Ribeiro e Argemiro, isolados do mundo, morrendo de sezão na propriedade decadente.

– “Como você disse, esse médico que está no conto (como Pilatos no Pai Nosso) – aderiu ‘Nhorinhá’ – é ele. Mas não deveria estar. Na minha opinião, também, ele tem de ser cortado, no máximo reduzido a uma simples menção”.

Quando mandei o volume de volta, recebi uma terceira caixa, desta vez enviada por “Selorico Mendes”, endereço Praça “Guararavacã”, Florianópolis. Dentro, a primeira e segunda edições de Sagarana – de abril e maio de 1946, produtos da Editora Universal, do Rio de Janeiro.

– “Devolva a remessa para a biblioteca de Guita e José Mindlin” – orientava “Rosa’uarda”.

Caramba – pensei – parece coisa da maçonaria, dos rosa-cruzes, dos templários, dos cabalistas, cátaros, tugues, “assassinos”, cavaleiros da malta, da máfia!

– “Selorico Mendes ou seja lá quem for – digitei, impaciente – acabe logo com o mistério e me diga por que estou recebendo esse mecenato, esses tesouros, com risco, inclusive, de um acidente, um extravio!”.

Respondeu-me “Cara-de-Bronze”:

– “Você sabe que o Sagarana ficou em segundo lugar no ‘Prêmio Humberto de Campos’. Sabe que o primeiro ficou para o pernambucano Luís Jardim, com Maria perigosa, de quem – vida e obra – nunca mais se ouviu falar. E que o voto do desempate da comissão julgadora foi (coisa bem especular, bem borgiana, rosiana), justamente de outro grande GR – Graciliano Ramos – que, anos depois, conversou muito, muito, com um Guimarães Rosa bem mais maduro, pouco antes da primeira edição da obra (que aconteceria somente oito anos e muitas viagens ao exterior depois). A Graciliano devemos várias alterações no livro, inclusive, talvez (eu é que suponho) a redução da dúzia de contos da versão original para os nove que restaram. Pois bem – ‘Cara-de-Bronze’ acrescentou – nós, os ‘amigos de GR’, pensamos: e se tivéssemos Graciliano conosco... para continuar a colaboração? Sim, porque de 1937 a 1957, 58, nosso amigo esteve – como diz Sonia van Dijck – ‘em demanda do texto’, parando, entretanto, a busca desse Graal na quinta edição. Cansou. Mas o que nos impede de ter nosso Homero, que todo mundo sabe que não foi um homem só?”.

“Sonia van Dijck!” – pensei – ocorrendo-me, pela primeira vez, que uma das grandes especialistas em Guimarães Rosa vivia na Paraíba, e que talvez isso explicasse a menção do nome de Zezita Matos naquele six degree of separation! Faria ela parte da cadeia que teria levado meu nome aos “amigos”?

– “Como assim?” – digitei. – “Vocês querem produzir uma edição especial do Sagarana, assinada pelo grupo? Se for, digo-lhes que apontar falhas num ídolo é como levar a zoom para as 500 mil craquelures da Mona Lisa, para sua insignificância no tamanho e para sua imensa sujeira, que o Louvre nunca tirou porque não tem como”.

Recebi outro pacote. De “Jisé Simpilício”, da Rondônia. Dentro da caixa, uma fita de vídeo. E foi assim que, em minha TV, surgiu meu amigo Carlos Heitor Cony (“seria ele um dos six?! É muito ligado a Cuba, como Zezita!”). Parado num cais, água mole e pedra dura por trás, a camisa vermelha com bordados amarelos, a calça e os sapatos cor de pele e de camurça, o bigode antigo (que eu lhe disse, uma vez, lembrar-me o do seresteiro Carlos Galhardo), ele ouviu, de braços cruzados, uma voz em off lhe fazer uma pergunta, que ele respondeu olhando para mim:

– “A impressão é de uma fratura na tradição do Ocidente que simplesmente nos deixou de fora”.

– “De fora do quê?” – a voz quis saber. – “Do acervo do Ocidente?”.

– “Infelizmente. Veja bem: nós não temos um paradigma fundador. Os gregos têm Sócrates, os italianos têm Dante, os ingleses, Shakespeare, os alemães, Goethe, os russos, Pushkin, os espanhóis, Cervantes. Nós...”.

– “Nós temos Camões... E Fernando Pessoa, além de Machado, é claro!”.

– “Não, não: dois desses são portugueses, e Machado não chegou a ser um paradigma!”.

– “Estou pasmo! Machado não enche as suas medidas?”.

– “Eu acho difícil um autor de uma cultura, como se diz, não consolidada, periférica, em boa parte ainda em formação, acho difícil que um autor nessas condições, mesmo da altura de um Machado... Olha – e o som da gravação cresceu – SEM UMA FIGURA QUE NOS UNA, NOS CRISTALIZE, POR ASSIM DIZER, NÓS NÃO VAMOS PODER ASSUMIR UMA GRANDE TRAJETÓRIA INTELECTUAL, CULTURAL, NO MUNDO. AINDA NÃO TIVEMOS ESSA FIGURA. Machado de Assis chegou perto, GUIMARÃES ROSA CHEGOU PERTO, Carlos Drummond... Mas ainda não temos essa referência. Nós estamos ainda na situação dos pré-socráticos. FALTA-NOS UM ELEMENTO CONGREGADOR QUE DIVIDA AS ÁGUAS”.

Fim. Fiquei estatelado com a declaração, olhando para o nada por algum tempo. Quando abri o outlook para comentar a entrevista, havia uma mensagem de “Pedro Pindó” para mim:

– “Viu a fita? Nosso entrevistador e Cony não parecem os primos Ribeiro e Argemiro, um derrotado – falando da iminente morte pondo fim às suas e nossas vidas inúteis –, o outro procurando alguma esperança em todo aquele desalento, ambos apaixonados pela musa Luísa, aquela que se foi para sempre com o irresistível vaqueiro, que talvez seja o demônio? Bem, felizmente entendemos que o primeiro passo para a solução de um problema é a consciência de que ele existe. Cony nos deu essa consciência. Agora nós, ‘amigos de GR’, queremos superá-lo, sará-lo, resolvê-lo. E posso lhe assegurar que os melhores escritores, teóricos e críticos vivos deste país estão conosco, incluindo você. Vamos, portanto, ao segundo passo: Você recebeu as várias versões do Sagarana, incluindo a que Graciliano viu antes do concurso. Como você sabe, em 1967 GR ia ser indicado para o Prêmio Nobel pelos editores dele na Alemanha, França e Itália, mas ele morreu. Ele era, é ainda, o que temos de melhor. Arrigucci Jr. – você viu isso na FLIP – foi aplaudido de pé em Parati quando disse que GR é tão grande quanto Faulkner e Joyce, mas nós – amigos de nosso maior gênio literário – sabemos que isso NÃO É VERDADE. Talvez fosse, se ele tivesse vivido mais dez, vinte anos (morreu com 59). Então resolvemos fazer um esforço coletivo, um mutirão para... aprimorar a obra ele. Mas, claro, não podemos nos atrever, por enquanto, a tocar no Grande sertão: veredas, embora tenhamos de, um dia, chegar nele. Temos de começar do começo. Continuar rosianos desde o princípio, ao contrário dele, que lapidou o Sagarana durante vinte anos e, exaurido, parou dizendo: ‘Melhor rende deixar quieto o mato velho e ir plantar roça noutra grota’. Vamos, portanto – decidimos isso – começar nossa operação com ‘Sarapalha’. Por quê? Justamente porque ‘este – disse o próprio autor – é um dos contos de que gosto menos’. Caramba: e aí o Luiz Carlos Vasconcelos monta, aí na Paraíba, o ‘Vau da Sarapalha’... e com ele deslumbra o mundo (você viu em Londres). Deslumbra por quê? Porque, como o Walter Salles comentou ao ver a peça, ‘ela pega o Brasil pela jugular’. E o que o Luiz Carlos Vasconcelos fez, que jamais ousamos fazer – até agora – no conto? Completou-o no teatro! Como? Vejamos: a nega Ceição, por exemplo, é apenas um esboço, em Guimarães Rosa. Ela existe, na peça, com a presença de Soya Lira! O cachorro Jiló do conto não chega aos pés da cadela baleia, do Vidas secas de Graciliano, mas na peça, com a recriação feita pelo extraordinário Servílio do Holanda – ele seminu e de cabeça raspada fazendo o absurdo mas genial papel do vira-lata –, Jiló se tornou vivo!!! E aquela infernal fornalha – que não existe no conto – soltando fagulhas? E a sonoplastia do Escurinho? E a cena final, com o álcool derramado pegando fogo azul, simulando o rio crepuscular em que – num barquinho de brinquedo – Luísa e o demônio vão-se embora juntos? É absolutamente genial! Daí que dizemos: una-se a nós, companheiro, e mãos à obra!!!”.

– “Cara” – eu disse, desorientado. – “Se não pretendem assumir que vão produzir coletivamente o ‘Sarapalha’ ideal, o que querem fazer, ao fim e ao cabo?”.

“Joãozinho Bem-Bem” respondeu:

– “Não podemos abrir mão do grande carisma do próprio Guimarães. Precisamos de nosso Homero. Nossa proposta é fazer – começando por esse conto – exatamente o que faz o grupo de grandes aficionados da atriz Glenda Garson (na verdade Glenda Jackson) no ‘Queremos tanto a Glenda’, de Júlio Cortázar!”.

Meu deus!

“Sô Candelário” argumentou:

– “O raio laser e a ONU apareceram nas aventuras de Flash Gordon antes de se tornarem realidade. A Viagem à Lua já estava em Júlio Verne! O pára-quedas, em Leonardo da Vinci!”.

Fiquei por um instante atordoado com a grande... e tão doida, genial porém maluca... idéia, corajosa, inédita, daqueles caras, lembrando-me do trabalho dos cinéfilos do conto de Cortázar (alguns deles muito ricos) seqüestrando todas as cópias de cada filme em que Glenda Garson tivesse trabalhado, reeditando-lhes os pontos fracos – que (segundo eles) eram resultado de falhas, sempre, de diretores, montadores, roteiristas, fotógrafos, jamais dela – para devolvê-los ao público... perfeitos.

Talvez Arrigucci fosse um dos six, já que a idéia da coisa toda partira de Cortázar, sobre o qual ele fizera o fabuloso Escorpião encalacrado. “Ah, não me importa” – eu disse, ante aquela equação com tanta incógnita. – “Pra que saber? O fato é que é realmente uma tentação, essa, de corrigir o ‘Davi’ de Miguelângelo, muito adulto para a narrativa bíblica; uma tentação, essa, a de erguer todo o concerto número 21 – para piano e orquestra, de Mozart – ao nível do segundo movimento; uma tentação, essa, a de jogar fora todos aqueles enormes quadros medíocres de Rubens que cobrem o corredor principal do Prado, pura palha, para deixar no museu apenas o seu ‘Jardim do Amor’ e ‘As Três Graças’, colocados no centro dele! ‘Sarapalha’ tem o toque de midas do gênio, claro, mas há, realmente, um desequilíbrio entre os longos trechos apenas de descrições – como a do avanço da maleita e a do retorno da vegetação (tomando conta do povoado vazio) –, seguidos de diálogos secos que poderiam ser enriquecidos com a melhor técnica rosiana, aquela em que ‘as palavras – como ele mesmo disse – têm canto e plumagem’. Cortar, realmente, toda aquela história do médico que esteve no povoado, e diminuir o excesso de flashbacks provocado por uma narrativa que tem um só fim mas princípios demais – como a chegada da malária, a chegada do primo Argemiro (que se instala na Sarapalha pra ficar perto da mulher do primo), sem falar na partida dela com o demônio.

– “Até que enfim você aderiu” – disse-me “Jazevedão”. – “Pense no que é elevar ‘Sarapalha’ ao nível de Tutaméia, em que GR chegou ao seu auge. Pense no que podemos criar – em Minas e no Brasil todo – de arcaísmos, inversões sintáticas, reconstrução de ditos populares, tresloucados paradoxos, quebra de clichês. Uma coisa é GR trabalhando sozinho, nos anos 30 e 40. Outra somos todos nós para assessorá-lo, agora com análises das mais variadas perspectivas: filosófica, semiótica, lingüística, comparativa, da construção da narrativa, e – evidentemente – ecdótica, para não perdermos o rumo. Ah, ele falava apenas sete línguas e arranhava quinze? Nós, juntos, dominamos cerca de sessenta. Vamos adotar até a teoria dos polissistemas da Escola de Tel Aviv, se necessária. O Brasil vai ter, meu amigo, um SuperGuimarães! Um SGR que teria nos deixado – maravilha das maravilhas – uma última versão (agora, sim, definitiva) de todas as suas obras revisadas!”

– “Mas como vocês farão isso?”.

“Sesfrêdo” disse:

– “Você, que gosta tanto de Arte, conhece por certo o caso de Meegeren, o pintor que falsificou os quadros de Vermeer. Ele ‘plantou’ suas criações em pontos distantes da Europa, fora da Holanda e, ousadamente, ao ‘descobri-los’, convocou os maiores experts de Haia para convalidá-los, o que realmente foi feito. Temos, entre nós, um falsário de documentos... capaz de trabalhos perfeitos... e amigo de SGR. Podemos fazer, por exemplo, com que alguém encontre essa última revisão rosiana... nos depósitos da Biblioteca Pública da Cidade do México. Guimarães Rosa esteve lá em seu último ano de vida, representando o Brasil no Congresso Latino-americano de Escritores, no qual atuou como vice-presidente. Mas por que ele a teria deixado lá? Por um motivo bem dele. Teremos em mãos uma carta manuscrita – assinada por ele – contando que, num sonho, ouvira a voz de Quetzelcoatl – a serpente emplumada (cultuada por Aztecas, Toltecas e Maias) – dizendo que deveria deixar sua obra como estava, ou ele – como no caso da posse na ABL – morreria”.

– “Meus amigos” – eu disse. – “Vocês sabem, tanto quanto eu, que essas coisas são sempre descobertas, mais cedo ou mais tarde. Como o Segundo Tomo del Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Como os versos de Otacílio Batista atribuídos a Zé Limeira. Como o Rembrandt, o Velázquez e o El Greco do MASP. Como os livros Deuterocanônicos no Antigo Testamento”.

Recebi um bilhete com cerca de quarenta anos, assinado pelo próprio kardecista Guimarães Rosa:

– “Sim. Mas me dê uma relação dos trabalhos como o nosso que jamais foram descobertos”.*


W. J. Solha na Estante Virtual
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