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terça-feira, 22 de março de 2011

Vilões e mocinhos (Manuel Bulcão)



Paulo Honório, personagem de Graciliano Ramos, pertence ao tipo que, nos Estados Unidos, chama-se self-made man, isto é, alguém que se fez por si próprio — no caso dele, destruindo almas pelo caminho. Não é, entretanto, pessoa inteiramente má: nas páginas finais do romance São Bernardo, esse homem agreste (elemento entre outros da caatinga) pune-se numa comovente autorreflexão. E diz: “Não consigo modificar-me, isso é o que mais me aflige.”

Decerto que, no processo de formação do caráter, este tende a se cristalizar a partir de certa idade, adquirindo a força de uma segunda natureza. Mas, não haveria na aflição do velho Honório algo que contradiz sua vileza, um quê de bondade que já consiste numa modificação? Ou seu fim, melancólico como um soluço, seria apenas a intensificação do seu modus vivendi pregresso? Pois seu isolamento – interpretariam alguns –, antes emocional, tornou-se também físico, e sua agressividade, menos viril do que sádica, espraiou-se a ponto de envolvê-lo como vítima, de voltar-se contra ele próprio, fazendo-o abandonar sua fazenda aos calangos e carrapichos. E quanto ao resquício de bonomia, isso subsiste em todos nós, inclusive nos sociopatas (definitivamente, anjos e demônios não existem).

Difícil saber se tal mudança, embora mínima, foi real ou não passou de mera troca de sinal: de Sade para Masoch; até porque a história, narrada pelo protagonista, mostra, além de fatos, toda a riqueza e vicissitudes da subjetividade humana (pensamentos volitivos, pontos-cegos, mecanismos de defesa do ego, os paradoxos da autorreferência...?), nisso consistindo seu realismo.

Acredito, todavia, que indivíduos maduros preservam a capacidade de melhorar psicológica e moralmente, seja após décadas de orações ou sessões de análise – o que, no geral, dá no mesmo, já que tanto o religioso como a maioria dos analisandos dirige-se a Alguém que não fala – ou, mais provavelmente, depois da rebordosa de acontecimentos traumáticos, na convivência diária com a sombra da morte?

Não há dúvidas de que, por sermos partes de um universo imperfeito e tendente à desordem (cf. 2ª lei da termodinâmica), maior a probabilidade de quaisquer alterações tardias, pelos motivos citados, trazerem as marcas da deterioração (ressentimento, amargura?). Eu mesmo não sei se minha atual tentativa de fundir a arte com a vida – minha body art pouco apolínea – é elevação ou reles diversão no tobogã da decadência.

Penso que o caroço duro e, também, fator decisivo da qualidade da mudança está numa variável: o narcisismo infantil remanescente. Caso este seja razoável, isto é, suficiente para alimentar a comezinha autoestima e vaidades normais – segundo Freud, pequenas transgressões e um grão de excesso são salutares –, o indivíduo, exercitando sua autopercepção, pode reconhecer seus erros e evoluir. Se, porém, transbordante for a libido narcísica, fica muito difícil qualquer modificação positiva.

Aliás, um dos estereótipos ligados ao narcisismo compreende os que, por se acharem excelentes, não querem mudar. Trata-se do “bom-moço”: palmatória do mundo e querelante – apraz-se em brigar com vizinhos, síndicos, garçons, porteiros, flanelinhas? –, frente a qualquer problema não busca soluções, porém culpados, que nunca é ele. (Sabe da piada da mãe coruja? — “Minha filha é santa, mas seu marido? Agora deu pra ser corno.”) Perdoar ou pedir perdão? Somente o subtipo “cristão devoto” realiza tais demonstrações de humildade, no mais das vezes para rivalizar com Moisés (“Era Moisés muito humilde, mais do que todos os homens que havia na Terra.” — Números 12:3).

Simpatizo com o bom-moço, devido a um traço comum: adoro meu caráter nota sete, pois não me exige muito esforço e dá pra passar de ano. Logo, por que mudar?
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