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sábado, 16 de abril de 2011

Metacrônica II (Simone Pessoa)


O paradoxo do cronista é que, ao tempo em que tem intensa conexão com o dia a dia das pessoas, é, em geral, um solitário. Na ânsia de retratar o entorno e decifrar o que está além do visível, o cronista acaba por se isolar na redoma das palavras. Com isso, perde, muitas vezes, a oportunidade do convívio com as pessoas em favor do silêncio imprescindível ao ato criativo.

A fortuna é que mesmo a insônia é providencial para o cronista. Na quietude de meu quarto, me debruço neste escrito. Afinal, todo canto é lugar de crônica. Nas esquinas da vida, há sempre espaço para divagações, recordações, vivências e possibilidades mil a serem cronicadas. E, sendo plural, a crônica consegue a proeza de retratar a singularidade das coisas, dos seres, das circunstâncias, como um caleidoscópio dinâmico a refletir novos matizes.

O fato é que a crônica é uma entidade onipresente. E, ao contrário do que se possa pensar, o autor não busca uma crônica: ele se esbarra nela. Canso de me deparar com crônicas que urgem ser escritas em lugares e situações imprevisíveis. Resta-me servir de instrumento de impressão e expressão.

Nessa minha vigília extemporânea - preferiria estar dormindo e sonhando com anjos e ovelhinhas -, permaneço desperta, tentando colocar no papel abstrações que brotam compulsivamente.

E em meio a essas elucubrações, me recordo de que, quando menina, gostava de brincar de mímica com meus irmãos e amigos. Tínhamos que revelar coisas com gestos, sem qualquer verbalização ou escrita. Agora adulta, me ocupo em discernir rumores e sentimentos que clamam por serem revelados com palavras. Na velhice, quiçá, passarei meus dias tecendo novelos de lã – fios da meada do tempo em crônicas tardias.

O gorjeio dos passarinhos me desperta dos devaneios. A luz ainda tênue do sol traspassa as frestas das venezianas do quarto e o cheiro gostoso do orvalho me enche as narinas. Abro a janela e aprecio o esplendor da natureza. Nasce mais um dia. Finda-se mais uma crônica.

Liberta do crônico ofício, minhas pálpebras sinalizam fadiga. Um novo e largo bocejo prenuncia que Morfeu me concede uma trégua. Fecho a janela, me aconchego na cama e, dessa feita, sem cantiga de ninar...
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