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domingo, 3 de julho de 2011

Alaor Barbosa: a universalidade do sertão (Mário Jorge Pechepeche)

(Alaor Barbosa)

A incursão crítica abrangendo todo o copioso cenário perspicaz e arguto dos livros de Alaor Barbosa será impelida inexoravelmente a uma amplificação gigantesca do uso do arsenal de análise literária. O conjunto de inumeráveis configurações e subsídios gerados pela leitura de seus livros obriga, por suas faces multifacetadas, que o estudioso ultrapasse o que seria apenas um rito de visão imediata e contida para desdobramentos dialéticos da extensão de observatório de letras.

Embora possamos arbitrariamente apontar obras em destaque como referências consagradas, obras-primas, (seriam “Picumãs” e “Uma Lenda”) entre as demais ele é daqueles autores cujo conjunto da obra forma um alentado e luminar panorama literário pelo que Wilson Martins, crítico de bagagem estupendamente aparelhada, com acerto e justiça, invocou o nome de Alaor Barbosa ao lado de Balzac, Thomas Hardy, Eça de Queiroz, Dostoievski, Graciliano Ramos, Giovanni Verga.

Nominando e refundindo até três vezes seus títulos, como: “A espantosa realidade” – que já passara por dois outros nomes – é de conspícuo interesse que caracteres essenciais da sua estilização já se acham fundados, como fascínio e empolgação, nas suas primeiras publicações, desde 1964, nos contos: – “VOLTA” (páginas 64 e 65), através de uma moldagem estilística insinuante, promove a transformação do texto linear por uma habilíssima fruição frásea em persuasiva criptografia, transmudando a linguagem que intenta e consegue ser um perfeito amálgama de ação com clima psicológico que o conto expressa (clima mental que é uma dotação de expoente notável daí por diante em suas narrativas), lavrando aqui uma amostragem dela em ponto menor, nitidamente imbuído da sagacidade densa de um modelo caracterológico em que José Lins do Rego era magíster único em sua época e rivalizava nisto com Machado de Assis.

– “Rua de mulheres”: muda o leme da linguagem pondo-se como narrador direto e, além disso, também precocemente dotando a Literatura Goiana de um cânone exaustivamente usado décadas depois, pelos nossos autores e que foi fundamental na consagração estética máxima de um deles, Gilberto Mendonça Teles, – A metalinguagem.

– “Um João e outros”: – É uma amostra da insaciável busca inovação narrativa que, mormente neste período, impulsionava Alaor Barbosa na estrutura da escrita, contudo sem concessão a superficialidades (por exemplo, as pirotecnias esdrúxulas, mais visuais do que literárias), uma vez que a sua formulação de novel estruturalismo tinha uma arquitetura marcante e memorável. Ele como que cerziu a trama – ao final, foram várias dentro de um conto fazendo coro à moda daquela época em que, principalmente ocorria na música, desfilou histórias e personagens em um pupurri que as alternava em contrapontos e assim a montagem de cada uma ia se sucedendo a intervalos entre elas, mas todas com início, meio e fim, numa seqüência giratória de fragmentos.

Detecta-se ainda neste Um João e outros (mais tarde renominado como “Polifonia metropolitana: Um João e outros”) uma de suas futuras peculiaridades: A ironia que, de sutilíssima, pode até escapar aos desavisados – pois ele a conteria sob uma capa de tom brejeiro, mas que na realidade é um registro de cepa Voltaire-machadiana, às vezes em cutiladas de frases soantes com gosto de forte pimenta-pungente, ferrão em brasa de mordacidade, entrevista em expressão arisca (para entendê-la, leia-se o conto todo) como esta: “– iche, nosssa mãe gosta muito da Tiana, sonha para a Tiana o que nem Tiana sonha nunca” (página 122).

– “Révora” e “Qualificação no IPM”.

Nestes contos já se aponta mais um de seus caracteres de dialetização estilística: o seu expressionismo direto – de realizar o realismo fantástico, o dele, à Rubem Fonseca – em que ambos ficcionizam a personagem real sem edulcorá-la sem filigranas e lantejoulamentos fantasiosos como fazem Gabriel Garcia Marques, Jorge Luiz Borges, portanto mantendo a biografia real da personagem mesmo quando ficcionada no enredo. Este cânone irá aparecer esparsamente em outras publicações, mas é evidente como suporte principal do romance “O exílio e a glória”.

– “Ponte do Barbiel” – neste documento Alaor Barbosa revela sua excepcional capacidade de apreensão do psicologismo das situações narradas, e, na evolução das histórias, como se, também para ele, elas fossem situações inéditas, assim, conhecendo-as de surpresa, o enredo subitamente apresenta um novo quadro que faz brotar recruzamentos de estados psicológicos magistralmente compulsados. Tal psicologismo que claramente é poderoso a ponto de estabelecer uma aura que ressuma na sua expressão linguística e se presentefica também em “Um rapaz chamado Rogério”, tudo em “Picumãs”.

Outros caracteres que foram modelando a literatura das décadas finais do século XX – vão comparecendo, portanto, nas páginas que se iam publicando: Ele é autopersonagem em “Um poeta e seu pai”, conto do livro “Praça da Liberdade”, onde ainda pratica o balzaquismo, pondo personagens em trânsito em diferentes histórias; intertextuação com Alfred de Musset, Mário de Andrade, Euclides da Cunha e vários outros; faz estruturalismo dialogal, no conto “O acusado Laerte”, livro “Campo e Noite”.

De retorno a “Picumãs”, uma perspectiva de excepcionais tópicos vislumbram-se no conto “Viagem ao Acontecer”. Este que, sem dúvida, é de estatura estilística digna de antologia de contos universais, eclode sob primado perfeccionista irrepreensível de soberba concatenação entre os elementos do universo literário, que são a temática, a narrativa, a personagem e o narrador, postos em confronto. agrupados e compactados, formando uma peça escritural opulenta de esplêndidas resoluções de estilo. Deste modo sob o império de uma linguagem pluridimensional, colima uma estatuária estruturalista de caracteres que, para melhor clareza, devem ser perfilados um a um: primeiro, corrente de pensamento e criptografia.

Percebemos que há fluxo de pensamento e criptografia em uma originalíssima associação, pois que outros autores usam estes recursos, mas, separadamente, isto é, ou um, ou outro, enquanto que em Alaor Barbosa há uma perfeita fusão de ambos – seria um fluxo criptográfico – que assim confere ao texto um aprofundamento da intensidade angustiante do subjetivismo, viga-mestra deste conto, e que assegura outro surto fenomenológico de linguagem: personagem, narrativa e narrador se moldam e se perfundem em um assombroso encadeamento de nuances estilísticas inéditas, uma vez que se configura ao leitor acompanhar a personagem como que dentro do seu imo pensante, na companhia do narrador, todos viajando imbricados.

KAFKANIANISMO

Ainda não se esgotam nestes anteriores rastreamentos, todos os cenários estéticos de “Viagem ao acontecer” e por isso relembro a sua assombrosa formatação de múltiplas modelações escriturais que o projetam na galeria de histórias curtas universais. Isto porque o seu epílogo, saindo da escrita automática criptográfica, migra para o surrealismo obliterante e toldado de Kafka, ofertando com este contraste textual, uma espetacular dialetização estilística, uma vez que o novo artifício subitamente instaurado faz o leitor desvincular-se da parceria psíquica com a personagem e por-se como seu observador dentro de um cenário como contendo público na sala de cinema e a história na tela fluindo, porém, por um efeito de técnica operativa, juntos jazem todos completamente mergulhados no escuro!

Outro livro que veio ampliar esta esplêndida constelação de contos de Alaor Barbosa é os “Rios da Coragem” em mais uma ascensão de perfil estético, com conquistas auspiciosas na sua resolução e urdidura do estilo em novos caracteres de fenomenologia literária nos contos, a saber:

– “Naquela época” – modelo magistral de um estilo em que, vazado em todo o livro aqui alcança ápice formidável e ele se faz de uma representatividade literária capaz de merecer lugar em qualquer antologia nacional. Trata-se de sua argúcia e habilidade em conseguir e fusão de três aspectos mandatórios da sua pena com rara felicidade e precisão:

Primeiro: descrevendo na primeira pessoa, consegue enlear a impressão gustativa da leitura para um ensimesmamento e intimismo proustiano com que temos, em última análise, uma perfeita e precisa expressão de um cochichamento, no fluxo da história, escorrendo em nossa mente.

O segundo: jungida ao cochichamento, encontramos o registro da fala goiana típica, feita não só do vocábulo, mas o bloco resultante de goianidade (não o detestável termo caipira que enfeia enojadamente qualquer texto).

Terceiro: harmonizando na temática um atual aspecto (também Humberto Crispim Borges o faz com maestria) de tríplice faceta que é confluir na narrativa o sertão, o rural e o urbano, criando em uma estupenda conotação de ao mesmo tempo ser um narrador cosmopolita e regionalista, tal como é a estampa cultural atualmente no chamado “mundo global”, que, pela mídia, coloca a taba dos Xavantes ao lado da Coroa Inglesa...

Portanto, não se admite mais apenas ter a visão estanque de cada setor, como há até algumas recentes décadas passadas com que se dizia um autor ser sertanista (regionalista) ou urbanista (cosmopolita). Desse poder de fusão destes três aspectos Alaor Barbosa nos dá um soberbo panorama de seres e das coisas, a ponto de nos remeter, ao mesmo tempo ao visual nitente de um Monteiro Lobato ou ao intimismo cogitante de um Machado de Assis. É história curta por ser conto, mas monumental nas alegadas qualidades que reúne, obra-prima “Vila Bela de meus amores”, bastando ele para consagrar nacionalmente seu autor entre os melhores contistas da atualidade no Brasil.

Da mesma maneira que “Os Rios da Coragem” implicou como que um envernizamento e clarinação – introspectiva e fraseologicamente o leitor tem esta sensação – na bagagem contística de Alaor Barbosa, os romances “A Morte de Cornélio Tabajara” e mais intensamente em “Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia”, porque neste a linguagem sofre transliteração modeladora de um mimetismo verbal que se ajusta à moldura e aura temporal da história, comunicam rastreamentos de interferências na aplicação dos seus dotes estilísticos que em “O Exílio e a Glória”, visavam mais o realismo ficcional de entidades do meio (as cidades e sua mídia, como “O Cruzeiro”, o “Diário Carioca”, o “Diário de Notícias”, identificado com os cânones do Existencialismo de Sartre, do que a supremacia indiscutível das personagens. Principalmente em “Memórias do Nego-dado Bertolino d’Abadia” reaparecem aquelas farpas de ironia dissimuladas, vespídias, chistes e sarcasmos mais tantas outras aquarelas sardônicas aplicadas aos atores políticos, sempre iguais em todas as épocas e latitudes, em seus fundamentos de vileza. Ou aquelas tiradas zombeteiras e galhofas, por exemplo, nas paginas 213 e 290, de igual quilate àquela da página 122 de “Cidade do Tempo”.

Uma particularidade de engendramento temático ocorre com o capítulo XXXI e que é uma raridade na literatura. Na verdade, só Alaor Barbosa e Bariani Ortêncio tiveram sagacidade de praticá-la: é a autointertextualidade, isto é, um autor aproveita a mesma imagem e plasma outra história. Deste modo, o capítulo XXXI de “Memórias do nego dado Bertolino d’Abadia repete a espetacular bizarria abantesmática de “Viagem ao Acontecer” de “Picumãs”.

Compreende-se que autores de produção intensa e volumosa podem chegar a construir um panorama, um verdadeiro universo de caracteres que se destacam, por englobarem, em muitos livros, uma particularidade geral.

Logo, não adianta que apenas tenham muitos títulos publicados, deve haver entre eles um caráter analógico e conotativo. Exemplos destes são Jorge Amado perfundindo terra e mar, Érico Veríssimo conotando litoral e interior, José Lins do Rego, a vida rural.

Sem dúvida, Alaor Barbosa, com o ícone Imbaúbas campeando em toda sua obra e até título de uma delas, arrola uma transcendência estética e antropológica que estabelece um mundo de características formando uma dicção, uma expressão dos “modus vivendi”, do mundo do sertão agreste, rústico, bravio, inculto. É um carimbo dos mais importantes em seus textos, igualmente auspicioso e magistral para a Literatura Brasileira.

O nosso entendimento da nuance linguístico-antropológica de Alaor Barbosa se dará mais facilmente por uma analogia com José Lins do Rego, mas, primeiro, com Honoré de Balzac que em seus livros compulsou uma enciclopédia de caracteres da sociedade de sua época, dos seus costumes.

A cosmovisão de Balzac era o minudente registro dos vastos cenários da sociedade, volumosos arrolamentos de uma elite, uma nobreza, as sagas francesas de fóruns intelectivos e culturais invejados pelo mundo todo, embora com pesados desvãos inerentes ao humano.

Já José Lins do Rego perfilou a gleba e os quadros de uma massa rural dos engenhos de fazenda.

Por força de uma sociedade primitivista, ainda caricatural interiorana e inculta, restava a Alaor Barbosa o pincelamento de alígeros painéis, pontilhados de miríades de matizes de uma dialetização urbano regionalista, como se fizesse, por este contraste e contraponto direto, uma “Comédia Humana” da oralidade goiana, sertanista, de cenário captado na sua porção urbana, em sua vida ainda desembasada e imatura, desprovida e superficial de valores culturais.

Mesmo assim, reflete o discurso da temporalidade dessas falas, sob a mordacidade manhosa, alfinetante e até galhofa, às vezes. Neste confronto de faces sociais, vê-se que Alaor Barbosa deu Universalidade ao Sertão. Imbaúbas é uma daquelas paisagens de que a humanidade sempre cogitou através dos tempos: o paraíso bíblico, “A República” de Platão, a “Utopia” de Thomas Morus, “A Cidade do Sol” de Tomaso Campanella, A Ilha da Baratária do “Quixote” de Cervantes, do condado imaginário Yoknapatawpha de Willian Faulkner que foi a provável sugestão para a Ilha do Caribe e outras da nobelada Tony Morrison, a Macondo de Gabriel Garcia Marques, a “Pasárgada” de Manuel Bandeira, “O Vale das Quimeras” de Clara Dawn, etc.

As pertinazes e plangentes perspectivas que “A Lenda” oferece é o seu panorama desdobrado ao longo de todo o livro em duas principais vertentes: a história alinhada sob dois paradigmas proustianos e a sua reformatada elocução estilística. No todo, estas três características combinam-se de forma extraordinária para síntese dialética de estilo e narrativa de Alaor Barbosa. Os cânones proustianos se reconhecem pelos caracteres de sua prosa que transcorre uma vez mais no matiz de fluxo contínuo de pensamento, daí o texto aparentando um monobloco. A outra proustianização é a sua adoção de memorialística de uma crônica familiar repassada dos flagrantes da vida da personagem principal como núcleo de uma cosmovisão – o mundo em volta dele.

Após a análise das dimensões temáticas de “A Lenda”, alcançamos a sua expressão de forma literária. É um romance que teve seu microcosmo de origem ou plasmação seminal no conto “Meu Irmão Balduíno”, o derradeiro das ficções de “A Espantosa Realidade”. Este evento biobibliográfico, sagazmente diacrônico de Alaor Barbosa, consiste na gênese por “spin-off”, isto é, novo romance gerado a partir de outro, distinguindo-se aqui pela nuance textual em que o modelo geratriz é um conto. Porém de início, já o leitor tem uma loquaz amostra da capacidade transmutante e dinâmica de estilização de Alaor Barbosa, quase que uma heteronímia nascendo em relação aos textos anteriores ao seu estilo.

Na escrita agora figurada na “A Lenda”, de seu habitual adereçamento de termos acessórios que a perícia linguística de Alaor Barbosa sustentava em valor estético com alta qualificação e senso de arte, os períodos transformam-se em uma pertinaz anticircunlocução, isto é, a frase é então despojada desses acessórios e adjuntos, seja na formulação da idéia ou no emprego lexicográfico com acepções variadas. Nessa filtragem fraseovocabular, o seu texto se alça a uma altivez exemplar, mercê da concatenação de saborido arranjo vernáculo, sem se furtar à linearidade, contudo em uma formatação de timbre antológico ao gosto dos Clássicos – como ele, os legítimos detentores da escrita elegante, cujo ornato se molda, não por torções ou pirotecnias, mas pela fundamentação essencial do pensamento.

Além desses caracteres que de a “A Lenda” auferimos, que são, evidentemente, aqueles que o erigem como monumento escritural na Literatura Brasileira, há outra conotação que julgamos impossível e imperdoável esquecer de referi-la. É a criação de uma aura, um acondicionamento de psicologismo que se vai criando na história e que obrigam a uma leitura atenta, seguindo passo a passo a evolução e continuidade dos fatos no enredo, indo ao desfecho de chocante clímax e suspense, capaz de envolver o leitor no impacto da emoção final em um turbilhão de sensações indescritíveis... Este efeito que ele consegue sobre o leitor é um raro apanágio só de autor clássico e, tendo-o, Alaor Barbosa pode assim se proclamar um clássico universal.
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(Do livro “O Senso da Obra Aberta na Literatura e o Modelismo Conjuntivo da Atualidade” (págs. 289 e seguintes, II volume).
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