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quarta-feira, 20 de julho de 2011

A literatura do avesso de Renato Tardivo* (Daniel Franção Stanchi*)



A tela do avesso, o avesso da tela

Do avesso (Com-Arte, 2010) é o livro de estréia de Renato Tardivo. Neste livro, composto por dezenove textos, Renato nos cumprimenta com uma belíssima epigrafe: “Só há um único destino àquele que viaja: o futuro do pretérito”.

Tal como Paul Celan, o poeta romeno, nos diz que a poesia é como um aperto de mãos e que somente mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros: Renato Tardivo nos brinda com esta epigrafe-aperto-de-mãos que não só profetiza o que virá, mas nos revela o tom cíclico e oracular do qual a literatura de Renato se faz testemunha silenciosa. O fim é o começo, o começo é o fim. Mas que tem a literatura a ver com isso e, mais especificamente, a literatura de Renato Tardivo?

Os textos Do Avesso nos revelam algumas das multiplicidades do cotidiano, assim como paisagens que se descortinam, ora no enredo e na linguagem bem trabalhada que desvela um estilo singular, ora no leitor, como num jogo onde a próxima jogada é influenciada pela anterior, como num filme que convida o telespectador a participar ativamente das cenas sob o custo de sairmos transformados.

Deste modo, leitor, autor e, talvez, um terceiro participante vão sendo tecidos nesse interjogo do avesso – assim como no encontro terapêutico e na obra de arte genuína –, o que garante o tom surpreendente em cada um dos dezenove flashes que o compõem.

Não só o surpreendente se revela como também o tédio do homem moderno e contemporâneo, herdeiro das Luzes ofuscantes da razão que desemboca na globalização, em perfeita “queda livre’’ (título do primeiro conto), enclausurado no mesmo das grandes metrópoles, ziguezagueando nas esteiras feito um hamster embriagado pela tênue lama das novidades e o terror ofuscante ofertado pelo indiferente mercado. A clausura apelante do mesmo pode ser escutada no silêncio das entrelinhas e na voz de algumas das personagens do avesso, incorporado no anseio de superação do humano: o rapaz que mesmo detestando o trabalho, mesmo sem ter sido um bom aluno, de repente descobre a possibilidade (incrível!) de ‘’criar’’ pessoas em seu cartório: “Um dia o fascínio por certidões de nascimento exorbitou. E eu tive uma grande idéia. A idéia que me salvaria. Eu podia criar uma pessoa. Bastava digitar uma página. Poucas palavras. Um nome. Data e local de nascimento. Avós. Pai e mãe”.

Ou ainda no “Cinema diário’’, onde encontramos uma família rica, porém imersa no tédio do blá-blá-blá das crianças que nada revelam aos pais, das palavras repetidas da esposa que vive sob o script burguês que não surpreende o marido, anestesiado pela hidromassagem: “Deitado aqui, meu olhar se deixa esquecer. De frente para o sol, a vista protegida pelo vidro fumê, taças de prosecco para acompanhar, assisto ao anoitecer. O de hoje. E o de ontem, anteontem, o do dia antes de anteontem e o de tantos outros dias que, súbito, o jato da hidromassagem me traz à memória”.

O cotidiano do avesso: a memória

No silêncio de nós mesmos, no silêncio do cotidiano, moram os outros que encontramos e também os outros que ansiamos encontrar. Essa é uma das facetas que “Ariel’’ parece sugerir. Estamos aqui não no registro meramente biológico da memória, mas da memória que é revelação do poético.

Neste conto ou prosa poética, acompanhamos as memórias de alguém que se relembra de um amigo de infância, Ariel, que vivia com seu pianinho para todos os lados e que em um dia, sem explicação, vai embora. Neste pequeno objeto musical, o pianinho, está presente a singularidade do garoto que vê o mundo e os outros a partir da musicalidade do encontro, da peculiaridade dos gestos, dos sons que emanam em uma conversa e também no silêncio. Tal singularidade jamais é alcançada, a presença do outro abre frestas na memória corporal, o encontro verdadeiro preserva o mistério: “Depois que ele partiu, nunca mais consegui me lembrar do seu rosto. Nas muitas vezes em que pensava nele, as recordações se transformavam em música”.

A imprevisibilidade do viver e o conflito característico dos encontros humanos também estão presentes nos contos, como em ‘’Desembarque’’ e nas estranhas diversões sádicas do delegado Ambrósio.

A precariedade presente em todo ser humano aparece bem descrita em ‘’Equívoco’’, no qual se pode acompanhar um grupo de pacientes e seu terapeuta, que acabam em uma delegacia. A munição da lógica bem protegida pelo arcabouço conceitual – arma tão comum no campo cientifico – parece não ter efeito algum perante o imponderável.

Não só o imponderável se desvela, mas também a sensualidade marcante de tudo aquilo que vivemos e que se tenta resumir pelo nome de adolescência. Todavia, a descrição poética de ‘’Graça’’ supera qualquer definição conceitual: “Era noite. Não podia escutar as frases soltas que ela desconstruía. Tinha jeito de despedida. Mas corajosa como sempre, ela pousou as mãos nos meus ombros. E fizemos aquilo que jamais havíamos feito. Demoramos a soltar os lábios. O beijo foi tão longo quanto os onze meses seguintes. Não fomos descobertos e salvamos o mundo”.

A literatura do avesso: a testemunha do autor e do leitor

A experiência da leitura de Do Avesso é fascinante, tanto pelo tratamento dado à linguagem que desliza entre o cinematográfico e a prosa poética, tanto pela temática multifacetada de mistérios e revelações impressionantes as quais só os bons escritores nos dão.

Muitos autores assinalam a função ética da literatura não só como expressão da linguagem ou ruptura da mesma por meio de procedimentos lingüísticos inovadores, mas fundamentalmente como resistência às mazelas de um dado momento histórico onde a condição humana é posta em eclipse, sendo a barbárie o silencioso grito de guerra ou o slogan saltitante daqueles que detêm o poder a tal ponto de os ‘"perdedores’", os exilados, passarem a ansiar por uma vida (des)norteada pelo suposto poder (ou saber) hegemônico que aparentemente garantiria vantagens a indivíduos "que passam a vida à esperar pelo surto... que nunca veio".

Neste vértice, além de ser um modo fecundo de resistência à fragmentação do mundo contemporâneo, onde o cotidiano do ser humano é atropelado pelo domínio do capital e da técnica, e o ser humano, reduzido á individualidade, se confunde com mais uma mercadoria a ser substituída, a literatura apresenta o ser humano em seu frescor, no árduo caminho de ter a tarefa infindável de reinventar a própria existência.

A literatura Do Avesso de Renato Tardivo é polifônica e relevante por ser inventiva e límpida, testemunhando o cotidiano e a situação humana no mundo que se desvela no entrechoque da palavra proferida que se faz carne de si ao reunir e um único lócus o sujeito e o objeto, como nos ensina o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (autor que Renato Tardivo certamente aprecia), que se desvela no silêncio do encontro que transforma. É nesse sentido que a literatura de Renato é interventiva, pois propõe a recriação do mundo por meio do despertar para o simples no instante, no avesso da entrelinha. Como reverte Tardivo: “Por um triz é sempre para sempre”.
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* Daniel Franção Stanchi é escritor, psicólogo, mestrando em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Em suas investigações tem dialogado com a literatura como modo de acesso ao ser humano.
* Renato Tardivo. Contato: rctardivo@uol.com.br e renatotardivo.blogspot.com
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