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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Condomínio (Assis Coelho)



Abriu a janela e sentiu o clarão do sol ofuscar-lhe os olhos. A visão externa era o único privilégio daquele pequeno edifício velho com listas de rachaduras verticais e sinuosas que de repente se perdiam num emaranhado de formas indecifráveis. Era um quadro abstrato e sujo que contrastava com os edifícios de cores vivas e de formas arquitetônicas arrojadas e simétricas da vizinhança.

Tudo naquele edifício estava deteriorado. Nada restou de completo. Eram restos tortos que desafiavam a regularidade e a higiene dos prédios que o circundavam. Algumas janelas velhas e de cores diversas ajudavam a completar aquele cenário de fim de batalha de Stalingrado.

Outros moradores, que foram surrados por alguns vizinhos, haviam migrado para outras paragens mais acolhedoras e qualquer uma era menos hostil que os vizinhos daquele prédio. Por indolência ou falta das mínicas condições de se mudarem, ficou um casal que sobrevivia entre dejetos ali no pequeno prédio. Foram chegando sem o obstáculo de portas fechadas. Tudo estava escancarado. No início foi fácil a acomodação. Excetuando alguns resmungos, se aquietaram diante da solidariedade na desgraça. Para que criar marolas num mar já tão revoltoso que eram suas vidas? Nada se sabia dos reais proprietários. Estórias eram inventadas ao sabor do vento da imaginação. Uns falavam que o antigo casal fora premiado na loteria e agora andava a girar o mundo só no bem-bom da vida. Outros falavam que tinham sido mortos a tiros ao visitarem parentes na Terra Santa. Alguns asseguravam que haviam abandonado a cidade para viverem na quietude entre animais no campo. Nos botecos e salões da vizinhança os prognósticos cresciam à proporção que o lixo em volta do prédio aumentava. Entre as correspondências, muitos cartões de felicitações enviados por políticos que nunca os tinham visto. Cartas de muitas madames que prometiam a felicidade total através dos búzios se misturavam a mensagens de igrejas evangélicas que prometiam a salvação a preços módicos.

De vez em quando, o casal aparecia na janela e ficavam de mãos dadas contemplando a beleza do horizonte. Do lado oposto, os moradores enfurecidos com a sujeira ao redor. Andarilhos pousavam na calçada e ali mesmo faziam suas necessidades mais básicas, sem se importarem com janelas e portas escancaradas. Cachimbos, cigarros e garrafas eram compartilhados sofregamente. Depois de alguns gestos descompassados, se deitavam indolentes, enrolados em trapos de cores e cheiros indecifráveis. Alguns órgãos do governo local tentavam inutilmente removê-los. Quando o fazia, em poucos dias voltavam e ficavam ali como leões marinhos ao sol.

Nos últimos dias, o número de moradores de rua daquela quadra tem diminuído rapidamente. Alguns sobreviventes apareceram com cabeças esfaceladas e alguns membros quebrados. Essas mortes e mutilações coincidem com a instalação de uma academia de jiu-jitsu que instalaram na redondeza. Os praticantes desta arte marcial desfilam pelo bairro, ostentando músculos e debilidade mental. Reúnem-se no gramado da pracinha para praticarem os golpes aprendidos na academia, onde injetam litros de esteróides anabolizantes em seus músculos, que os fazem se assemelharem a paquidermes bípedes. Algumas ONGS e pastorais sensibilizadas com a desgraça tão evidente, de vez em quando se apiedavam e levavam alguma ajuda em forma de sopas e roupas usadas. Desse modo, fortaleciam a fraqueza daqueles seres abandonados pelo estado e pela sorte. É fato que agora restam poucos moradores de rua. A notícia de que matavam muitos mendigos por ali logo se espalhou. Só alguns desavisados apareciam naquela quadra. Eram solidários na desgraça. De vez em quando, o casal é visto apanhando algumas coisas nas lixeiras. Andam de mãos dadas, indiferentes aos olhares hostis. A pobreza não foi capaz de os separar. Compartilham o pouco e o quase nada das sobras apodrecidas. Talvez insistam em lutar com o invencível. Mesmo diante das formas indecifráveis dos riscos nas paredes externas do prédio, ainda fortes que encobriam as inúmeras pichações. As suásticas sobressaíam entre caveiras e punhais.

Propagandas de um novo shopping surgiram em outdoors e muros da redondeza. Em salões de beleza, barbearias e nos bares, lotados de homens vazios, não se falava de outra coisa. Finalmente aquela quadra se igualaria às outras vizinhas que ostentavam shoppings com fachadas arrojadas e modernas.

Tudo foi feito, como convém às ações espúrias, na calada da noite. Ouviu-se uma grande explosão às quatro da manhã. As luzes dos prédios vizinhos se acenderam quase simultaneamente. Dos escombros de ferros retorcidos podiam-se ver alguns restos de corpos ensanguentados que agora combinavam com o colorido das fachadas dos edifícios. O Serviço de Limpeza Urbana foi rápido na limpeza dos escombros misturados com restos humanos. Tudo foi esquecido tão rápido. Naquele local foi erguido o Shopping Center Paradise, no qual giram pessoas com inúmeras bolsas cheias que olham para as vitrines, fascinados, já pensando nas compras de amanhã.
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