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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Floriano Martins entre botocudos e astecas (Nilto Maciel)


(Floriano Martins)

Não me lembro da primeira vez que vi Floriano Martins. Deve ter sido em 1975 ou 76, naqueles dias de inquietação que precederam o surgimento da revista O Saco. Ele contava apenas 19 anos, andava com uns cadernos de poemas, roupas e chinelas de hippie. Interessava-se por poesia, mas também por música e teatro. É desse tempo seu primeiro livro, em parceria com Alano de Freitas.

Em 77 voei para Brasília e ele se internou (não no sentido manicomial da palavra) na Bahia. Em 79 surgiu o Grupo Siriará e dele Floriano tomou parte, ao lado de Adriano Espínola, Airton Monte, Antônio Rodrigues de Sousa, Batista de Lima, Carlos Emílio Correia Lima, Eugênio Leandro, Fernando Teixeira Gurgel do Amaral, Geraldo Markan Ferreira, Jackson Sampaio, Joyce Cavalcante, Lydia Teles, Márcio Catunda, Maryse Sales Silveira, Marly Vasconcelos, Natalício Barroso Filho, Nilto Maciel, Nirton Venâncio, Oswald Barroso, Paulo Barbosa, Paulo Veras, Rogaciano Leite Filho, Rosemberg Cariri e Sílvio Barreira. Não acompanhei de perto o movimento, embora dele participasse. Não me encontrava com aquelas pessoas, a não ser uma vez por ano, quando para Fortaleza viajava de férias. Frequentávamos o Estoril, bebíamos muito, falávamos de literatura, brigávamos por uma palavra, ríamos de outras.

Lembro-me de uma viagem de Floriano a Brasília, no início dos anos 80. Conversamos muito a respeito de literatura e música. Ele escrevia letras para canções, fazia parcerias. Queixou-se de não ser mencionado nos discos e analisou uns e outros compositores e intérpretes. Gonzaguinha lhe parecia muito pedante. O maior interesse de Floriano, porém, sempre foi o surrealismo, sobretudo a poesia hispano-americana, à qual se dedica desde jovem.

Os anos se passaram, eu na capital federal, ele em Fortaleza e pelo mundo. Falavam-me dele em Bogotá, em Lima, em Caracas, no México. Cidadão em constantes andanças pelo orbe e pelas urbes, tradutor de mil poetas da América hispânica, palestrante, editor. Apesar de vagarmos por caminhos diversos (na verdade, eu não andava nada, vivia socado em Brasília), mantínhamos certa amizade. Eu lhe mandava meus livros, ele me enviava os dele. Sobre a poesia dele escrevi algumas linhas em “Floriano Martins: Poesia da Paisagem”, após ler Nenhuma Correnteza Inaugura Minha Sede, publicado em 1979. Trecho: “Floriano Martins não pinta, não porque lhe falte pincel, mas porque olha o mundo, olha o olhar, olha para fora, para dentro e para aquele espaço que nenhuma máquina conseguiria ver. Revela sua própria loucura, aquela que põe diante do mesmo telescópio a criança, o primitivo e o mágico. A loucura de olhar e ver um gato mastigando, irônico, a minguante face da Lua”.

Floriano publicou muitos outros livros, fez centenas de viagens, tornou-se nome conhecido no cenário da literatura. Não sei por que nos afastamos. Voltei a vê-lo uns 20 anos depois, em 2001, na cidade de São Paulo. Convidados a participar de um encontro de escritores e editores brasileiros e estrangeiros, no Instituto Goethe, encontrei-o à porta do elevador do hotel onde nos hospedamos. Abraçamo-nos, rimos e fomos nos preparar para as palestras. Foram três dias de muita cerveja, conversa fiada, brincadeiras e peregrinações pela metrópole. Na primeira noite, saímos, eu, ele, Claudio Willer e outros escritores, cujos nomes não guardei. Bebemos muito e conversamos como velhos amigos, embora eu não conhecesse Willer e tivesse pouco conhecimento de Floriano.

Quando viajava a Fortaleza, perguntava por ele. Está em Montevidéu. Outro refutava: Não, já voltou de lá, e ontem viajou para Tegucigalpa. Não sei se brincavam comigo ou com ele. Ou se não brincavam. Certo dia, encontrei Jorge Pieiro. Sabes onde está Floriano? Qual deles? O nosso amigo e conterrâneo. Ah! pensei que você estivesse interessado no ex-presidente. Nem me lembrava mais de Floriano Peixoto. E fomos à casa nova do poeta. Recebidos à bala (trazia às mãos dúzias de balinhas de chocolate, limão, café), dirigimo-nos a um bar. Eles riam a mais não poder. Não sei de que riam. Gargalhavam sem parar. Não me importava com aquilo, olhos nas ancas das moças que passavam pela calçada. Leste o último livro de fulano? Aquela múmia sem bálsamo? Riam mais. Que achas de beltrano? Pensa que sabe escrever. Gargalhavam e eu me virava para as pernas que iam e vinham. E de sicrano? Continua parnasiano e nem sabe que o parnasianismo está morto. Riam como nunca. Nesta selva, são poucos os botocudos que se salvam.

Passados mais alguns anos, estivemos em Aracati. Não sei se um festival literário, um encontro cultural ou uma festa internacional de comes e bebes. Ao chegarmos (conduzidos em carro oficial ou terceirizado), pedimos as chaves dos quartos na portaria. Entregaram uma. Floriano riu. Continuei muito sério. Riu mais quando constatamos a presença de uma só cama (de casal). Pronto, mestre, acabamos de nos casar. Indignado, voltei à entrada e exigi duas camas. Ou quartos separados. Acabávamos de nos separar. A moça não riu e prometeu (eu me sentia o verdadeiro Prometeu acorrentado) trocar a cama grande por duas pequenas. E fomos para a primeira noitada no bar do hotel. Cercaram-no poetas de todas as Américas: chilenos, paraguaios, peruanos, hondurenhos, maias, incas, astecas. E o abraçavam e falavam uma língua estranha (para mim), enquanto riam, sem parar. Sem querer, me embriaguei e fui dormir, sisudo e botocudo.

Fortaleza, maio de 2011.
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