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sábado, 3 de setembro de 2011

Com a alma à beira do abismo (Regina Ribeiro)

(Fonte: O POVO Online/OPOVO/Vida e Arte, Fortaleza, 3 de setembro de 2011)

Na publicação, Nilto Maciel embaralha tramas, mistura vozes num jeito enxuto de narrar (KLEBER A. GONÇALVES)

Novo livro do contista Nilto Maciel mostra o avesso do homem contemporâneo. Com leveza trafega pelos sonhos impublicáveis, perversões e desejos humanos. Num mesmo plano expõe o sagrado e o profano

Uma das vantagens de ler um livro de contos é poder seguir um ritmo próprio escolhendo as narrativas pelo título, como se fosse um jogo, ou simplesmente pelo humor do dia. Pronto, é este. Não é diferente com o Luz vermelha que se azula, do contista Nilto Maciel, lançado na última terça-feira. Aí é que mora o engano. É diferente.

Quem toma um conto da terceira parte até se espanta. Afinal, por que são tão diferentes dos primeiros? Em vez de caçar respostas, o melhor é indagar: o quê os torna tão diversos? E estes da segunda coletânea de contos que formam o livro?

Há, sem dúvida, algo que os norteia e no geral, os contos que mudam de cor é o retrato da alma humana à beira do abismo. Em comum, os narradores mergulham no limite entre a loucura, o onírico, a perversidade, o tormento íntimo, as obsessões do cotidiano. Nilto Maciel tira tudo do lugar, embaralha tramas, mistura vozes num jeito enxuto de narrar, econômico, faca de dois gumes. Nenhuma novidade se tomarmos a narrativa contemporânea como base. No entanto, é a linguagem que remoça a forma e nela o contista se assemelha a um menino brincando com palavras e frases, criando e recriando personagens.

Nesse exercício da recriação é que causa admiração a terceira parte do livro. Surgem ali mitos, figuras coloniais e antigas, além de personagens da história política e cultural do século XX transfigurados. Nada fica em paz na Terra, assim como no Céu. Divino e humano estão no mesmo plano, sonham, esvaziam intestinos, criam gatos, têm medo, seduzem, caem em tentação. São pequenos contos desenvolvidos com frases, às vezes, mínimas: “Nicolau, o imperador, sorria.” Ou “Não havia vivalma naqueles ermos gelados.” ou ainda: “Deitado numa rede, Anchieta acordava”. Parecem estar em desabalada carreira, com pressa de contar algo, inventados ali, na hora. Assim, Lampião luta consigo mesmo e vê quando o outro igual a si arranca-lhe a cabeça. Hitler faz questão de ressuscitar uma barata a fim de esmagá-la ele próprio: “Ora, aquela poderia ser uma barata judia”.

A simplicidade toma conta da forma. Os contos que trafegam entre o sagrado e profano, parecem ter um único narrador, certamente um profano, que perambula pela História e dá-lhe uma versão banal, cheia de feitos pouco honrosos. Aliás, todo o livro é um retalho da impublicável zona do horroroso, do que pulsa mais medonho no humano, do que não é dito, daquilo que só pode ser sonhado e esquecido. A beleza da linguagem repousa justamente quando conquista o patamar de dizer escondendo, de revelar deixando em segredo. É escrever e reescrever em tantas línguas quanto possíveis sem lhes tirar o mistério.

A primeira parte do livro de Nilto Maciel começa com o conto Os Outros. É inegável o tom borgeano que o permeia. Severino, Mariano, Bernardo são os múltiplos do personagem-narrador que se vê atormentado entre a mulher, Sibila, e Rafael, ele mesmo. Uma curiosidade: Os Outros só aparecem no espelho do banheiro, em nenhum outro lugar os encontra. Desesperado, Rafael arrebenta o espelho. Eles se fragmentam, mas ainda pulsam viventes.

Em O presidente em Berlim, múltiplas vozes se interpõem para dar voz ao personagem Ambrósio em sua loucura iminente. A obsessão de Ambrósio pelo vizinho expõe o cotidiano contemporâneo com seus medos, manias e desejos, mas sentidos como se fossem uma sombra, sem nitidez, apenas leve sugestão: “Ambrósio baixou o tom da voz: só queria saber se sabia do sujeitinho. (...) Na verdade, não o vejo com nitidez. Só de relance no escuro”. O abismo da alma se forma lentamente, em tom de máxima normalidade, enquanto se desenrola o noticiário político na TV: “Você não vai ligar a televisão? Precisamos saber se o presidente já está em Berlim”.

Na segunda parte do conto, há um menino solto em meio a sonhos e memórias da infância. A incompreensão das coisas num tempo em que tudo parece ser grande demais põe em relevo a dramaticidade das narrativas. Em alguns momentos os personagens trazem lembranças de longe, noutros a meninice já deixa claro que a vida parece exigir – sempre – um atalho que leva a alma à beira de um abismo permanente.

SERVIÇO
Luz vermelha que se azula
Autor: Nilto Maciel
Editora: Expressão Gráfica e Editora. 214 páginas.
Preço: R$25 (venda direta com o autor)
Outras info.: niltomaciel@uol.com.br

Regina Ribeiro