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terça-feira, 20 de setembro de 2011

O inventor de mundos (Henrique Marques-Samyn)

(Publicado em 19/09/2011 no site "Clave Crítica: semanário de ensaística e crítica literária": http://clavecritica.wordpress.com

Muitos já disseram que escrever é inventar mundos. Sendo possível rastrear um duplo sentido para o verbo inventar, a partir de sua raiz etimológica − visto que deriva do verbo latino invenio, -ire, originalmente ‘encontrar’, com a acepção figurada ‘imaginar’ −, a definição inicialmente proposta vislumbraria na escrita tanto a arte de fabular mundos (por meio de uma inversão dos princípios que ordenam o real) quanto a arte de encontrar mundos (que estão de algum modo relacionados à realidade, mas que escapam à experiência cotidiana por razões diversas).
Afirmar que a escrita de Nilto Maciel encerra uma invenção nos dois sentidos mencionados certamente soa, para os seus leitores, como uma obviedade; mas, se aqui o enfatizo, faço-o porque o próprio Nilto trata explicitamente do assunto no texto introdutório a Luz vermelha que se azula, observando que as três partes que compõem o livro encerram três modalidades de narrativas: contos de inspiração (“ditados pelo inconsciente”); contos de memória (resultantes de encontros com o passado, de “velhos álbuns de fotografia”); e contos da História (“engendrados com o objetivo de pisar na cara dos heróis/bandidos”). Evidentemente, essa divisão não deve ser compreendida de modo rígido: toda legítima obra ficcional envolve, em proporções várias, elementos da inspiração, da memória pessoal e da História dos povos; mas, se já Nilto a relativiza de imediato − afirmando ser a mencionada divisão uma “brincadeira de quem vive no ócio” −, cabe não desprezá-la. Há aí, no mínimo, um escorço de poética que explicita a tripla via pela qual se exerce o estro de Nilto Maciel, determinando um espectro temático que materializa um fundamental interesse pela experiência humana.

Os personagens que habitam os contos de Luz vermelha que se azula pouco se distinguem daqueles que povoam os outros livros de Nilto Maciel. São figuras frágeis, quase miseráveis. Algumas podem despertar compaixão: protagonista do conto que intitula a obra, Dirceu agoniza tentando esquecer, em meio um cotidiano medíocre e às palavras que registra num diário, o romance carnavalesco que terminou em tragédia; Inácio, o homossexual cuja morte metaforiza a marginalização de que fora vítima. Outras não despertam senão asco − é o caso de padre Coutinho, transformado pelos abusos da infância num algoz tão cruel quanto o torturador de quem se vinga, ou de (como não poderia deixar de ser) Stalin, atormentado por pesadelos nos quais vê um urso com a cara de Trotski.

Luz vermelha que se azula apresenta, lado a lado, contos mais longos e elaborados e outros mais breves, que talvez possam ser considerados breves anotações ficcionais. Embora essa variedade conceda ao volume certa irregularidade, há que se perceber que resulta de um risco calculado, derivado precisamente da (dupla) invenção de mundos à qual incansavelmente se dedica Nilto Maciel − esse cronista de cruéis realidades que desconhecem heróis, nas quais o absurdo não raro emerge como um efeito da incapacidade humana de suportar sua própria pequenez.
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