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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

‘Vida cachorra’, de Mariel Reis, entre o distanciamento e a identificação (Claudinei Vieira*)





Literatura não é reprodução da realidade (assim como nenhuma arte). É um reflexo, um comentário, uma postura, um ponto de vista do autor para o que lhe acontece ao redor. Nem mesmo uma pretensa literatura ‘realista’ pode fazer uma transposição direta da vida para as páginas: há sempre, e em primeira e última instâncias, a mediação do autor.

Os contos de Mariel Reis traduzem o ofício do escritor de forma exemplar: ao primeiro momento, nos deparamos com temas, histórias, personagens e ambientações, plenamente reconhecíveis e identificáveis pelo nosso próprio cotidiano, de nossas próprias andanças e conhecimentos, amizades e compadrios, brigas e discussões, amores feitos e outros perdidos. Há, portanto, neste instante, um movimento de identificações mútuas e correlacionadas, somos como estes personagens, passamos por estas situações, bebemos das mesmas garrafas, sofremos dores semelhantes. Na verdade, na maioria das vezes, em nosso dia a dia até tentamos fugir ou vendar os olhos, fingir que o que acontece é com os ‘outros’.

No entanto, Mariel Reis transpõe a simples reprodução do cotidiano e invade o imaginário, e esse é o ponto da literatura: a verdadeira identificação acontece não com os temas já sabidos e com as histórias já vistas, mas com a forma como é formatada pelo escritor. Desse modo, o que poderia facilmente cair no clichê, adquire novas e insuspeitas conotações. Permite-nos vislumbrar camadas escondidas pela mera ‘realidade’.

A prostituta que apanha do gigolô, numa relação de amor, sexo fútil, e ódio; os homossexuais espancados e mortos; o mendigo que protege sua única família, o cachorro; os favelados despejados, com seus barracos destruídos; a submissão e a prepotência do patrão e a traição da esposa; o papai noel que traz como ‘presente’, o assassinato. Os enredos são unicamente um ponto de partida. É a escrita enxuta, direta e muito bem demarcada de Mariel que os torna coerentes e multidimensionais. Vivos.

O rigor narrativo e formal em ‘vida cachorra’ é sua marca. As falas e os pensamentos dos personagens são fluidos, rápidos e refletem uma voz autêntica, sincera, ‘popular’, simples, mas nunca dominam o texto, elas são dirigidas e dominadas pela exatidão e disciplina do autor. Portanto, de novo, uma primeira identificação, e logo o distanciamento, a visão rigorosa e profunda.

Apesar da violência perpassar por todos os contos, física ou psicológica, muitas vezes culminando no conflito aberto ou até morte, esta não é a sensação maior que fica depois da leitura. Não é o primordial. O mais presente é a melancolia, a tristeza, a desesperança, a falta de certezas. Sinto muito, não há muitas alegrias em ‘vida cachorra’. O prazer, mesmo quando atingido, resulta de ou para uma frustração. Em ‘os pés do sr. monteiro’ (curto conto de duas páginas e o que mais gostei de todo o livro) o prazer proporcionado pelos pés de luzia faz o sr. monteiro esquecer a falência do seu negócio, a perseguição dos credores, as reclamações dos ex-empregados.

O rigor formal e a melancolia onipresente formam a arquitetura de uma obra coerente e fortemente amarrada como um todo. Alguns pontos fracos precisam ser citados. A opção de Mariel pelas minúsculas é um caminho interessante e arriscado, tem um lado positivo e outro negativo. Por ser utilizada pelo livro inteiro, em todas as páginas, é mais um fator de coerentização e de dominío da narrativa, e faz com que a melancolia seja ainda mais ressaltada por uma espécie de ‘miniaturização’ dos personagens proporcionada por esse recurso gráfico e eminentemente visual. No entanto, me deixou ao final uma sensação um tanto de frustração. Se para a obra é funcional, para cada conto em separado essa ‘minuscularização’ me incomoda um pouco, não parece acrescentar significaçõs relevantes.

Alguns outros momentos não são bem fechados. Não gosto, realmente, da última frase do conto ‘despejo’; na minha opinião, não é coerente com a personagem que a profere e enfraquece um excelente texto. Por outro lado, em outro conto uma frase tão simples e clichê como ‘ninguém está livre do espírito de natal’ está excepcionalmente bem encaixada e faz muito sentido!

‘vida cachorra’ é uma peça de qualidade e traz mais um passo de maturação de nossa moderna literatura brasileira.
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* É escritor, crítico literário e agitador cultural. Vive em São Paulo. Escreve o blog Desconcertos : http://desconcertos.wordpress.com/
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