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sexta-feira, 2 de março de 2012

O senhor Irineu, Anita Sabóia e eu (Nilto Maciel)



Li O senhor Irineu, romance de Daniel Coutinho, em seis ou sete dias. E me prometi uma resenha dele. O título poderia ser “O julgamento do senhor Irineu”. Matutava isso, sem vontade de iniciar outra leitura, quando resolvi ler as mensagens novas enviadas para o meu endereço virtual. Deletei as dez primeiras e, por pouco, não mandei para o lixo a de Anita. Foi apenas distração. Como quando joguei ao cesto do lixo uns contos de um conterrâneo. Já me perguntaram: Você não tem medo de cometer loucuras, com essa distração toda? Tenho, sim. Porém, um anjo (que não deve ser torto) me acompanha e me afasta dos extremos, como suicídio (ingestão de veneno para ratos) ou matança (com o carro) de crianças na calçada. Tenho tido muita sorte, muita ajuda ou muito juízo.

A mensagem de Anita Sabóia vinha precedida de um suave (título) “Oi, meu mestre”. Quando sou tratado assim, só falto me derreter de prazer. Queria saber se eu dispunha de novidades literárias. Ora, recebo livros quase todo dia. Depois de alguns rapapés verbais, dei-lhe uma informação: Tenho romance de um garoto cearense. A conversa demorou uns minutos. Se quiser ler, é só vir aqui. Eu queria revê-la, dos pés aos cabelos, dos joelhos fartos aos olhos de gazela assustada, das alvas coxas aos rubros lábios, aquela boca cheia de dentes, gulosa, sedenta. Saltei às mãos gorduchas, para não me perder de todo. (Não, não sou tão carnal ou lascivo, como vocês podem imaginar; preocupo-me também com a formação intelectual de minhas pupilas. Durante o ano de 2011, emprestei-lhe uma dezena de bons livros: Balzac, Astúrias, Tolstoi, Wilde, Machado, etc. Leu tudo, pois comentamos cada um, tanto em minha casa, como pela Internet).

Anita não demorou a me visitar. Chegou, cheia de sorrisos, me enlouqueceu por uns minutinhos e levou o livro de Daniel. Prometeu voltar em três dias. Dito e feito. Ofereci-lhe água da fonte, sombra e silêncio. Ela aceitou quase tudo, menos o mistério de ouvir a não-dito. Quis saber se o prefácio de Daniel merecia ser comentado. Se você o leu e eu o li, não nos é permitido excluí-lo. Acomodou-se no sofá e leu: “Minha pretensão era preservar o texto original da forma como foi concebido”. E sentenciou: O grande erro de dele.

Passeei pela sala, inquieto. Como defender o jovem romancista da sanha crítica daquela menina? Quis parecer professoral: O diálogo é quase obrigatório em romance e novela. Concordo com o senhor, mas é excessivo neste livro. A primeira linha já é uma fala. E ele ainda usa os tradicionais travessões e os chamados verbos dicendi: “exclamou padre José”, “disse dona Glória”, “concordou o senhor André”. Olhou para mim, com expectativa. Estaria sendo severa demais? Não me importo com severidades. Continuasse. Fez-se mais cáustica: São inúmeros os trechos de falas que deveriam ser suprimidos.

Pedi licença para ir à toalete. Precisava me livrar de ácido úrico. Mal pisei de novo o chão da sala, ouvi: Além do mais, quando narra, se perde em explicações inúteis, relativamente falsas ou que só servem para inchar a narração, como neste trecho: “Geralmente, as pessoas circulam nos horários matinais e noturnos. À tarde, as pessoas, quando não estão trabalhando, estão em casa”. A linguagem de Daniel é desleixada, especialmente no emprego repetido de certos vocábulos. Em algumas frases (não sei se de propósito), comete pecados imperdoáveis: “Surpreendentemente, surpresas surpreendem”.

Falei de literatura de entretenimento. Nem toda obra literária é apenas literatura. Por pouco, Anita não se irritou: Sim, mas é possível unir o útil ao agradável. Machado de Assis publicava contos, em jornais, para moças e senhoras desocupadas: entretenimento. Entretanto, não abria mão da linguagem apurada, do estilo elegante, da frase bem feita. Folheou o livro de Daniel e leu: “Dona Glória estava incomodada com aquela conversa que a filha veio contar. Fernanda dizia que tinha que cancelar seu noivado com Lázaro porque um estranho lhe disse que ela não o amava de verdade”. Veja que pobreza! Talvez uma revisão rigorosa, um copidesque profundo tivesse ajudado o rapaz a melhorar a aparência do escrito. Como em “Fernando sentiu um arrepio ao sentir o contato”. Neste trecho é mais visível a penúria: “Mariana e Tamara estavam na biblioteca com uma apostila de administração aberta, porém nenhuma das duas estava concentrada no que estava escrito naquele volume”. O verbo “estar” aparece três vezes. E a administração pode ser aberta ou fechada? Ademais a história é muito ingênua (como aquelas das antigas fotonovelas): “um homem a observava ternamente com um olhar esperançoso e sonhador”. A trama de telenovela para adolescentes lembra a de alguns romances do romantismo. Saí em defesa do rapaz: Não seja tão exigente. Fitou-me com olhos de fera: Nilto Maciel, os românticos, que fizeram uso exagerado de adjetivos, pelo menos conheciam de perto as figuras de linguagem. Brinquei: Figuras e firulas. E ela continuou: Mais tarde, escritores como Lima Barreto e os modernistas romperam de vez com o bom comportamento de seus antecessores.

E o que podíamos ver de bom no romance de Daniel? Ora, minha amiguinha, só por escrever (e ele deve ter lido alguns romances), já merece aplausos. Outrossim, este O senhor Irineu demonstra que ele aprendeu a lição dos mestres do romantismo. Talvez lhe falte a leitura dos modernistas e pós-modernistas. Anita sorriu e me deu outra lição: E dos grandes prosadores do século XX: Kafka, Joyce, Saramago. Mas isso virá com o tempo.

Fortaleza, 1º de março de 2012.

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