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terça-feira, 17 de abril de 2012

Do Arroio Chuí a Trapiá (Nilto Maciel)



(Arroio Chuí)

Passado o dia do meu aniversário natalício, recebi alguns presentes singulares. Nada de gravatas, camisas, meias, bermudas, barbeadores, coisas da juventude e da meia-idade. Foram seis joias, de valor incalculável. Os presenteadores são, na maioria, homens, o que evidencia a avareza das mulheres ou das fêmeas do meu convívio. Somente uma delas se lembrou de mim (deixo fora disso minhas quatro filhas e duas netas): Maria de Lourdes Alba. E olhem que nem a conheço. Os machos são velhos amigos: o gaúcho Nelson Hoffmann, o cearense - paulista Caio Porfírio Carneiro, o cearense Dias da Silva, o paulista Edmar Monteiro Filho e o paulista - paraibano W. J. Solha. E que mimos foram estes? Ei-los, em sucinta descrição: Veredas da caminhada (São Paulo: RG Editores, 2011), de Caio Porfírio Carneiro; Disseram de mim... (e de coisas) (Fortaleza: RDS, 2012), de Dias da Silva; Fita azul (São Paulo: Babel, 2011), de Edmar Monteiro Filho; Expressão de vida (São Paulo: RG Editores, 2011), de Maria de Lourdes Alba; Quando a bola faz a História (3ª. ed. Santo Ângelo: FURI; Florianópolis: LEDIX, 2011), de Nelson Hoffmann; e Marco do mundo (João Pessoa, Ideia, 2012), de W. J. Solha.

Presentes são mimos pessoais ou individuais, até aqueles ofertados em nome de grupos ou coletividades a outros grupos ou coletividades, como a Estátua da Liberdade (La liberté éclairant le monde) e o Cristo Redentor. Os agradecimentos também devem ser pessoais. A ancianidade, no entanto, obsta de me dirigir a cada uma das pessoas mencionadas no parágrafo anterior. Ela, a ancianidade, mais a indolência, me fazem rabiscar esta crônica de vários personagens. Que me perdoem os seis ricos dadivosos.

O primeiro impresso a ser noticiado é o último da lista do parágrafo inicial: Marco do mundo, de W. J. Solha. E assim me decidi na intenção de fisgar o leitor. Porque Solha é nome consagrado e escritor da linha de frente. Os demais ficarão enciumados? Não fiquem, não, que tenho outros mimos para vocês. Além disso, não posso analisar este edifício literário. Não por ser incapaz de fazer análise, mas por ser impossível analisá-lo. Bem que tentei. E sabem quem também descobriu isso? Ivo Barroso, que é poeta dos bons, tradutor de clássicos e crítico literário de garras afiadas e mãos de veludo. Assim: “É um poema-rio-mar-oceano tsunâmico. Monumental, aldebarã poética, afresco que explora todas as diretrizes líricas e zodiacais do verso. Uma obra inanalisável”. Para não ficar por aqui, ouso mais duas palavras: Marco é limite, sinal de demarcação, mas também “construção imaginária que os cantadores do Nordeste dizem ter mandado erguer, cheia de armas invencíveis” (Dicionário Michaelis). É uma modalidade poemática. Baseou-se Solha em dois mestres do cordel ou poesia popular: João Martins de Athayde e Leandro Gomes de Barros. E lhes prestou homenagem. O princípio (do poema) é genético (Gênese): “Abre-se o abismo de pedra e susto”. Tudo é grandioso, monumental (como observou Ivo Barroso) e até apocalíptico (Apocalipse), desde os primeiros versos. E mais não ouso anotar, estarrecido que estou, quase em estado de catatonia.

Para não perder o rumo da poesia, passo logo ao outro volume de versos. Expressão de vida, de Maria de Lourdes Alba, é mais minguado (em número de folhas) do que o de Solha. Em compensação, é composto de diversos poemas e algumas prosas. Li tudo, de capa a capa. E, mais uma vez, não me sinto capaz de fazer crítica. Quem sabe, uma observação. O poema enxuto “Dó ré mi” chama a atenção, pelo uso dos nomes das notas musicais e seu compasso com o movimento (tempo) da natureza: “A chuva o sol / a tarde em dó // A lua a brisa / a noite em ré // A névoa o silêncio / a madrugada em mi // A claridade o caminhar / a manhã em fá // O calor o meio-dia / o sol lá si // A vida em claves assim / cantada em dó ré mi”. Haja criatividade!

Passo da poesia à prosa de ficção e encontro meu amigo e mestre Caio Porfírio Carneiro, posto no rol daqueles que leio desde meus primeiros passos de leitor. De mais a mais, é dos poucos que não se cansam de escrever (tem mais de trinta volumes publicados). E sabem por que não se cansam? Porque escrevem bem. Sobretudo, composições curtas. Como Veredas da caminhada. Na primeira folha, o próprio Caio dá uma explicação: “Relembro e marco, com este livro de contos, a passagem dos cinquenta anos da minha estreia, em 1961, com Trapiá, do mesmo gênero, hoje em 5ª edição”. Caio tem se dedicado à narrativa breve. Não ao conto-piada e ao relato de um fato. Prefere a descrição sutil dos ambientes (“o estirão se alongando”) e dos personagens (“suado, extenuado, sacola pendurada nos dedos”), assim como a narração descritiva de gestos e atitudes (“aproximou-se, bateu na porta e arriou-se no banco tosco”) que conduzirão ao ápice ou ao epílogo. Não deixa de lado o diálogo, a fala dos personagens: “Por que você veio? Não sei”. Não qualquer fala, não qualquer “ai” ou “oi”. O essencial, apenas. Aquele diálogo que conduz o leitor (que pode ser o ouvinte) ao mais completo enlevo. Às vezes, Caio se ampara no monólogo. E o faz com a mesma habilidade do arquiteto de diálogos, narrações e descrições.

Outro mestre da prosa de ficção é Edmar Monteiro Filho. Não é tão antigo como Caio ou Solha, pois se iniciou em 1993, com Este lado para cima (poesia). Fita azul é belíssimo romance. Manuscrito de artesão empedernido (teimoso), como aqueles que passam horas e dias a tecer, burilar, cortar, polir pedacinhos de madeira, cordinhas, tampinhas jogadas ao léu. Vejamos este trecho em que a narradora mostra a pontinha do nariz ao leitor: “De frente para o armário, escolho e abro uma gaveta entre as mais antigas, as que visitei com maior frequência ao longo dos anos. Transbordam as folhas de papel branco de seda, dobradas em sanfonado, picotadas nas pontas e amassadas para se assemelharem mais às penas das asas dos anjos”. Não é qualquer escritor que esmiúça assim a vida de uma pessoa. É preciso ter muito talento, muita sensibilidade (de poeta). Ronaldo Cagiano, meu amigo desde os tempos de Brasília, tão apegado aos amigos como se deles fosse mais do que irmão, fez algumas observações (nas abas do tomo): “Do altar de seus cento e trinta anos, a narradora-personagem de Fita azul penetra a zona nebulosa de suas lembranças e lança um olhar atormentado, profundo e cirúrgico sobre sua existência”.

Dias da Silva não caminha aqui pelo verso nem pela prosa de ficção. “Este livro não é história nem obra de ficção: é só o ajuntamento do que disseram (exageradamente? para agradar apenas?) de mim e de coisas minhas” - explica ele na primeira aba de Disseram de mim... (e de coisas). Não é preciso explicar mais nada, a não ser isto: a publicação em foco é fruto da reunião (feita pelo próprio Dias da Silva) do que enunciaram a respeito de impressos dele: resenhas, artigos, crônicas, pequenas notas, cartas, etc. Há gente do Brasil todo e até da Itália (Ângelo Manitta). E todos se perdem em louvores ao dedicado homem de letras (há homens de números, de cifras, de letras de câmbio, de tudo o que se possa imaginar). O volume vem em ordem alfabética (pelo primeiro nome do autor do comentário) e vai de Ângelo a Vicente Paulo Lemos. Para cada um, Dias da Silva apresenta um resumo biográfico e bibliográfico, o que faz da peça uma pequena enciclopédia.

Encero estes apontamentos com duas palavras sobre Quando a bola faz a História. Nelson Hoffmann anuncia a gênese dele: composto em 1966, como “simples e bem-humorada crônica sobre o surgimento, crescimento e brilho do Futebol de/em Roque Gonzales, RS”, primeiro como simples caderno escrito à mão, “pobre relato futebolístico”. É a memória escrita de um clube de futebol de cidade pequena. Além de dados biográficos de personagens de Roque Gonzales, localizada nas proximidades do Arroio Chuí (que era onde começava o Brasil antigamente, isto é, no meu tempo de menino), o tomo está enriquecido com fotografias. E eis a riqueza dela: homenagem a pessoas simples (sem fama) que apenas queriam viver, brincar, ser gente. E viveram, brincaram, foram (ou são) gente, embora distantes dos holofotes das metrópoles e dos historiadores nacionais (oficiais).

Fortaleza, 14 de abril de 2012.

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