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quarta-feira, 25 de abril de 2012

Epígono de Câmara Cascudo (Márcio de Lima Dantas*)




Penso que poucos são herdeiros do padrão de interesses e pesquisas chantado por Câmara Cascudo. Lastro extremamente fértil e pleno de pistas, porém aguardando ainda estudos de maior envergadura, não apenas sobre a obra, mas sobre o que deixou esboçado ou apenas colhido, superficialmente, na frondosa árvore dos fenômenos culturais.

Muitos dos que se dizem estudiosos do nosso grande e humilde sábio pouco ou nada acrescentam à exegese da vasta obra cascudiana, permanecendo em tediosos bocejos encomiásticos e catando farelos de anedotas para serem contadas em auditórios repletos de gente desinformada e sem compromisso com a cultura. Salva-se um ou outro ensaio. Lembro o recente lançamento do Prof. Marcos Silva: Dicionário crítico de Câmara Cascudo, excelente trabalho de pesquisa.

Creio que o escritor e jornalista Franklin Jorge inscreve-se como aquele que melhor conseguiu apreender o espírito contido subliminarmente no projeto cascudiano de realizar uma cartografia do imaginário popular, dos seus, dos seus ritos e mitos, bem como de uma História dos eventos sucedidos na antiga Capitania do Rio Grande, e não esquecendo as obras acerca de tradições encontradas em todo o país, bem como os tipos populares e as Velhas Figuras. O certo é que Cascudo manteve um inextrincável diálogo com personagens que poderiam contribuir para o desvendamento dos contornos que constituem o nosso ethos.

Prova do que discorri é a 2ª edição do livro O Spleen de Natal [Natal: Edufrn, 2001]. De maneira original, Franklin Jorge consegue adentrar no imo de personagens que se destacam no grande teatro social, extraindo sua essencialidade de alguém que manteve algum tipo de contato intuitivo ou racional com a antiga Cidade dos Reis. Com efeito, as falas articulam uma espécie de discurso capaz de denunciar explícita ou subliminarmente o pathos etnológico/ontológico da polis.

As partes do livro entretecem, por meio do viés de cada falante, uma figura resultante de um agrupamento humano, nominando ou aproximando o que a caracteriza ou a distingue de outras villes. A luz franca do narrador – a personagem coadjuvante do livro, já que a principal é a Cidade do natal – durante o tempo da interlocução, faz exudar toda uma galáxia de signos presentes na memória coletiva, codificada que estava por meio do afeto, quer seja via sentimento do amor ou via sentimento ingratidão, variante bem conhecida do ódio.

O autor e seu alter-ego Jorge Antonio conseguem plasmar numa linguagem de elegância clássica, expressa através de parágrafos curtos, como se tivessem rememorando e se detendo, ruminando, um pouco sobre as imagens que lhes vem à mente; processo que faz lembrar as pausas respiratórias indiciadas pelas estrofes de um poema. Muito bem, eis aqui a virtude maior dos textos-entrevistas enfeixados no Romance de uma cidade: a consubstanciação de uma estampa cujas figuras são metáforas arrojadas, produzindo imagens mentais de alto valor estético empático. O real fulge em graça e beleza, transfigurado que foi num estilo capaz de atenuar um forte componente trágico contido na maioria das falas dos que se propõem a dizer algo sobre a cidade do Natal.

Enfim, o escritor Franklin Jorge andando sobre o aterro cultural deixado por Câmara Cascudo empreita a difícil tarefa de circunscrever a aureola dos seres assinalados, aqueles resguardadores de um caráter e de um espírito de uma época, sendo que o autor parece captar o exato instante do definhamento de um tempo e a virada em direção às novas formas de sensibilidade social das gentes da antiga Cidade dos Reis.

Livro singular no âmbito das nossas letras, escrito sob o signo de uma ingente bondade e desprendimento, O Spleen de Natal nos faz crer que a tarefa iniciada pelo velho sábio habitante da Junqueira Ayres, 377 encontrará epígonos dignos de preencher as lacunas deixadas por ele.

*Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Tribuna do Norte [Natal, 12 de setembro de 2003]

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