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domingo, 29 de julho de 2012

A suíte de silêncios de Marília Arnaud (W. J. Solha)

Deixo-lhe a melodia tecida nas cordas da minha carne, nos acordes da minha memória, na cadência do meu coração, a melodia-existência, labiríntica como o espírito, misteriosa como o tempo, definitiva como a morte. Último parágrafo do romance
 


Aquela que até agora era conhecida como brilhante contista, não começa o seu primeiro romance (Editora Rocco, Rio, 2012) com ganas de deslumbrar o leitor. Nada parecido com as quatro notas iniciais da Quinta de Beethoven; com as marteladas de piano que abrem o concerto número um, pra piano e orquestra, de Tchaikosky; a clarineta virtuosística de Rhapsody in Blue, a imponência da Abertura de O Guarani. Porque a violinista Duína – a personagem-narradora de Marília Arnaud – não nos quer levar a nada de grandioso, imponente, grandiloquente, arrebatador. Seu clima é o da Ária na Quarta Corda Sol, de Bach; do Adagietto da Quinta de Mahler; a do tristíssimo, lento – e maravilhoso – solo das peças para piano de Éric Satie, como Trois Gymnopédies e Trois Gnossiennes.



A vida – ela escreve – é uma suíte de silêncios, a longinqua música de Deus.

O cuidado com que Marília Arnaud nos apresenta cada nota de sua Suíte, é a de um solista que fecha os olhos com força, com doloroso gozo, pra obter os sustenidos mais difíceis e perfeitos do instrumento. Que instrumento, no caso?

Meu corpo, minha unidade. Meu corpo, minha vida. Meu corpo, eu.

É curioso o fascínio que o mundo das mulheres exerce, principalmente sobre os homens. Quando eu trabalhava no filme Era uma vez eu, Verônica – igualmente confessional – perguntei ao diretor e roteirista Marcelo Gomes, se ele iria dizer, depois, como Flaubert sobre sua Bovary, que “Veronique c’est moi”. E ele, rindo:

– Não, não...

Mas eu vi, passo a passo – no papel de pai da personagem – o esforço ingente da grande atriz, que é Hermila Guedes, pra chegar à perfeição de dar corpo à proposta do cineasta. Quem se esquece de Laura, Lara, Scarlett O’Hara, outras grandes personagens femininas do cinema? E de Aída, Carmem e La Traviata, na ópera? E das figuras femininas de Shakespeare, como Ofélia, Cordélia, Rosalinda, Desdêmona, Cleópatra, Julieta, Lady Macbeth? E acabo de ler os originais do excelente Palavras que Devoram Lágrimas, do paraibano Roberto Menezes, que será lançado em breve, pelo estado, em que há um fluxo de memória de uma personagem louquíssima à La Molly Bloom, via Almodóvar; e leio a sólida resenha do também nosso Rinaldo de Fernandes sobre Suíte de Silêncio e me lembro de seu premiado Rita no Pomar, e não há como não lembrar agora da Ana Karenina, de Tólstoi; da Capitu, de Machado; da Lolita, de Nabokov; de Anna Terra, de Érico Veríssimo; da Diodorim, do Guimarães Rosa; da Gabriela, Tieta e Dona Flor, de Jorge Amado, etc, etc, etc..

Mas é notável como aumenta o interesse dos leitores quando encontram tais almas em livros diretamente de autoras. Como Clarice Lispector, Françoise Sagan, Jane Austen, Virginia Woolf e assim por diante, simplesmente porque delas é que se espera mais... verdade.

Suíte de Silêncios é um romance extremamente feminino, extremamente bem escrito, extremamente triste e – sabe o que é dizer isso como elogio? – extremamente lento. Aborrecido? Nunca, never, jamás! E como ela conseguiu? Há uma cena incrível de equitação, no filme Mazeppa, de Bartabás, no qual ocorre uma demonstração de absoluto controle de um galope ao fazer a montaria – a cada movimento - quase não sair do lugar. Assim, Marília Arnaud – no que tange ao tema de sexualidade de sua narrativa de 190 páginas, por exemplo – entrega-nos um primeiro toque íntimo, o de Victor em Duina, apenas na página 174, e – na seguinte –, a do prof. Ramon. Só na página 179 o grande amor da jovem, João Antonio, faz amor com ela pela primeira vez. De novo a questão: Como ela consegue nos manter presos a seu depoimento? Como os cavaleiros de Bartabás: entregando-nos – perfeito em si mesmo – cada momento, cada etapa de sua evolução.

1) Foi quando passei a usar camisetas por baixo das blusas e vestidos, para disfarçar os seios de pitomba. Justamente nessa época começaram os constantes suores nas mãos, as espinhas purulentas no rosto, o odor repugnante nas axilas.

2) Existiria algo mais bonito do que meu corpo, livre de qualquer reserva, à espera do seu?

3) A carne! (...) Porque tudo é carne, cavidades, secreções, odores, e é tanto, e tão intensamente, que chego a pensar em seu mistério como sendo tão grande ou maior do que o da Santíssima Trindade!

4) Eu o amei como só é possível amar em tempos de guerra, com a lucidez alucinada de quem sabe que aquela pode ser a última vez.

5) Guardar segredos. Sempre fui boa nisso.

Marília Arnaud faz um instigante jogo de espelhos em sua história. A Duína quenarra, padece de uma dor insuportável desde que foi abandonada por João Antonio. E conta para ele ( na verdade para nós) o que está sentindo e o que está rememorando também: a angústia terrível – na sua infância – causada pela fuga da mãe com um amante, deixando o marido – e a filha – arrasados.

– Mamãe não voltou. (...) uma manhã como nunca houve outra igual! A primeira sem ela.

O desespero da rejeição que Duína sente e que também vê no pai adesesperam:

– Será que não existe nada mais indigno do que ser abandonado?

Quem viu Morangos Silvestres, de Bergman (Suíte – diga-se de passagem – também me lembra Bergman pela lentidão densa – é óbvio – e pelo forte vínculo Eros e Tánatos: sexo e morte). Pois bem: quem viu Morangos Silvestres, lembra-se do velho professor que, em meio a uma viagem de carro, para no lugar em que vivera muitíssimos anos antes, e se vê – a maneira bergmaniana de lhe mostrar a memória – em várias passagens decisivas de sua vida.

Observe a acuidade feminina destas observações de Duína sobre sua mãe, num detalhe dessa imensidão de um passado que não passa:

– Um homem atravessou-se na minha infância (...) calçando sapatos brancos.

E ela anota:

– Parecia agitada, a todo instante arrumando o vestido do corpo, ou passando as mãos pelos cabelos. E que jeito de falar era aquele, em um tom frágil e cantado, que eu não conhecia?

É num momento desse que se conhece o romancista. E, mais precisamente: a romancista. E o efeito na própria garota é decrito por ela mesma, décadas mais tarde:

Nesse dia, tive a repentina compreensão de que (...) em minha mãe existia algo indefinível, que transcendia a obviedade. (...) Essa descoberta foi o meu primeiro abismo.

Claro que o abandono da mãe a seu pai (e a ela) cala mais fundo quando a situação se repete com a partida de João Antonio, de volta para a esposa, deixando Duína, pela segunda vez, insuportavelmente rejeitada. E essa última dor torna a primeira maior. Borges fala que Browning é kafkiano escrevendo muitos anos antes de Kafka, mas alerta que atentamos para isso – evidentemente – só depois que Kafka existiu.

– Você se fora e eu me dava conta de que, enquanto vida houvesse, sempre se podia perder um pouco mais.

E ela realmente perde tudo: a mãe, Victor, João Antonio. A queridíssima vó Quela não morre, simplesmente: Deixou-me no meio de uma noite, sem despedida. E o maestro? Ao final da apresentação – ela conta do primeiro concerto de que participa – busquei, no momento dos aplausos, em meio aos olhos da plateia, os de meu pai, e o que enxerguei neles me deixou prostrada.

Duína, entretanto, não tem reações como a da personagem de Liv Ullman quando é humilhada pelo comentário da mãe – pianista famosa – à sua performance, no Sonata de Outono, de Bergman. Toco razoavelmente bem – analisa – na medida da minha mediocridade, que hoje encaro com uma quase indiferença.

Mas a perda de João Antonio – apesar de aceita (Não o culpo por haver partido) – é definitiva.

Fora de mim, além do meu patético mundo de dor e autopiedade, não existia nada. Nada.

Mas Duína tem seu resgate num golpe de mestre de Marília Arnaud:

Agradava-me aquela sensação ambígua e inconfessável de entrega à dor.

Masoquismo? De Duína. Da romancista, orgasmo criador:

Me deixe ficar quieta em minha concha, você bem sabe como aprecio essas zonas sombrias, que me são quase uma carícia.

E foi na frase seguinte que ela descobriu que tinha um belo romance nas mãos:

Sódor nos faz chegar à essência das coisas.

Marília Arnaud prefere selos a um outdoor. Música de câmera à orquestral, sinfônica, coros, trompas, trombetas. Sussurros em lugar de gritos. E, segura da qualidade do que produz, mantém-nos, passantes, no seu passo, compasso. Veja como ela descreve a capela da escola de sua infância:

É um mundo vagaroso, apartado do que zune lá fora, onde o ar é feito de um silêncio solene, que incha nos ouvidos, como se estivéssemos embaixo d’água.

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