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segunda-feira, 2 de julho de 2012

Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come (Nilto Maciel)


Segundo os antigos, se conselho fosse bom, ninguém dava. Todo dia, no entanto, recebo uma dezena desses manjares. Um dos mais frequentes é este: “Nilto, pare com essa besteira de criticar escritor medíocre. Não perca seu tempo com isso. Vá revisar os seus contos e romances, antes que seja tarde demais”. Tenho plena consciência de que estou velho. É para não entregar a bolsa à insaciável e eterna ladra que persisto em escrever e estudar. O ofício de editor (o jornal Intercâmbio, anos 70; as revistas O saco, 1976/77, e Literatura, 1992/2008; e o blog Literatura sem fronteiras, desde setembro de 2005) não me deixa, porém, abandonar a pena. Pois toda tarde recolho (o carteiro lança pacotes sobre o muro) livros, com rogos de leitura e comentário: “Nem que seja uma linha”. Os mais afoitos me suplicam prefácios ou pequenos textos para orelha. Chegam, por e-mail, diariamente, poemas, contos, crônicas, artigos, ensaios. Ora, para publicar ou deletar, preciso lê-los. Não posso, portanto, deixar de passar a vista por obras medianas e de baixa qualidade.

Se não me engano, ouvi isto de Fabrício Carpinejar (em tom de brincadeira): “Adoro livros medíocres; aprendo muito com eles: aprendo, por exemplo, a não escrever como os seus autores”. Shakespeare reescrevia peças menores. Romeo and Juliet tem enredo baseado na história em versos The Tragicall Historye of Romeus and Juliet (A Trágica História de Romeu e Julieta), de Arthur Brooke, retomado em prosa como The Palace of Pleasure (Palácio do Prazer), por William Painter. O imenso Cervantes, outro gênio a quem não se pode chamar de erudito, criou uma das obras-primas da humanidade, tendo, como ponto de partida, narrativas sem muito valor literário, as novelas de cavalaria. Não pretendo “melhorar” composições literárias reles nem imitar as criações superlativas. Leio os meus contemporâneos (a maioria) por obrigação de editor. Outros, por amizade.

Tenho me dado muito mal com tais serviços. Certo poeta fez imprimir uma seleção de versos e me solicitou um parecer. Li a versalhada toda e rabisquei umas observações. Em troca, o cidadão passou cinco anos sem falar comigo. Pouco antes de morrer, me pediu desculpas, reconheceu a fragilidade dos poemas apontados por mim como capengas (elogiei outros) e voltou a ser meu amigo. Era tarde demais. Outro me convidou a lhe arranjar um prefácio. Demorei um mês na labuta de redigir umas frases coerentes e verdadeiras. Pois o indivíduo não gostou nem um pouco do primeiro parágrafo e anunciou: “Obrigado pelo preâmbulo, mas será publicado sem as frases negativas”. Ao me mostrar insatisfeito com sua decisão, ele se zangou e até hoje não fala comigo.

Muitos desses escritores, principiantes ou maduros, se sentem tão insultados ou vilipendiados em minhas vistorias que se tornam meus inimigos. Como se eu cuidasse de suas feiúras físicas, de seus defeitos de personalidade, de seus aleijões de caráter, etc. Nas crônicas, sim, não me atenho a obras de arte, mas a pessoas. Porque crônica pode ser arte.

Meu mal se iniciou logo depois da puberdade, quando rabisquei o primeiro artigo, uma nota “crítica”, no afã de aparecer nas páginas dos jornais. De lá para cá, não pararam mais (meus colegas literatos) de me implorar uma palavrinha escrita. Consigo embromar alguns com promessas. Alego falta de tempo, morte de parente próximo, incêndio em casa, paralisia nas mãos, cegueira momentânea, doença grave. Os que insistem demais (já passou a cegueira? comprou móveis novos? conseguiu esquecer o morto?) terminam me convencendo de que mais vale decifrar os seus papiros do que tentar escrever contos.

Outro bom conselho que me dão sempre: “Não fale mal de ninguém. Se fulano é mediano, esqueça isso e faça um elogio. Criticar é apontar o dedo, acusar, censurar. E sabemos que quem aponta um dedo está apontando três para si mesmo”. Infelizmente, não sei mentir, como dizia aquele personagem de Chico Anísio. Não sei enganar. Além disso, me avigoro como criador, à medida que vejo os defeitos dos outros, como o fazia Shakespeare. Essas leituras nos fazem distinguir o que é narrar do que é não narrar. Evidenciam, em letras maiúsculas, o que são narração inútil, diálogo descartável e descrição desnecessária. Fazem-nos ver de perto o que é pobre, feio e rudimentar, e disso nos afastar.

Infelizmente, ninguém aceita crítica. É natural, é humano. Ou não aceita o silêncio. “Por que você não escreve sobre meu livro?” Ou seja, se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.

Para não me aborrecer mais e não criar outros inimigos, a partir de hoje, não tecerei nenhuma consideração (no sentido de apontar falhas ou defeitos), em artigo, resenha ou crônica, a impresso que me for enviado ou oferecido. Aqui se encerra minha desastrada carreira de crítico (ou censor, como dizem) literário de província. Lerei, sim, livros inteiros (se me cativarem); parte deles (se me aborrecerem desde as primeiras linhas). E apenas direi aos autores: “Adorei o seu romance, os seus contos, os seus poemas; estou conhecendo o seu escrito; muito obrigado pelo presente”. Para que não insistam (não peçam opinião, uma reflexão qualquer, uma palavrinha, seja lá o que for), enviarei cópia deste artigo.

Fortaleza, 21 de junho de 2012.

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