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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A musa: em Batista de Lima (Hermínia Lima)






(Publicado no Diário do Nordeste, Fortaleza, 22.09.2012)

Dizer algo sobre O sol de cada coisa, o décimo livro de Batista de Lima, é tarefa que deleita e que aflige

Tentar verbalizar ideias sobre os poemas deste livro é viver o paradoxo de querer calar e só sorver, com a subjetividade e o sentimento, o néctar que se derrama dos versos e, ao mesmo tempo, é viver a provocação de debruçar-se sobre a obra, munida com as armas da leitura técnica, para iniciar árdua e minuciosa análise sobre as infindas possibilidades que os versos nos ofertam. Sobre as infindas possibilidades ofertadas pelos versos de Batista, leiamos, a título de introdução deste diálogo, o poema Dúvida, que abre a primeira seção do livro, sob o título: Essa coisa de viver: (Texto I)


E assim me sinto, com panos poucos para cobrir tanto dizer. Nesse enlevo, caminhar sob O sol de cada coisa é deleite pelo prazer do contato macio e suave com a superfície sedosa do tecido poético que veste esta produção lírica do Mestre da Mangabeira; mas, ao mesmo tempo, é aflição pela vontade reprimida de comentar o livro inteiro, parte a parte, texto a texto, verso a verso, palavra a palavra, embora sabendo que isso tornaria quilométrica a escrita desta leitura. Eis, a seguir, pequena amostra do sedoso tecido poético ao qual me referi há pouco, segunda estrofe do poema Ao sopé de mim: (Texto II)

As duas faces

Diante do impasse anunciado, entre o deleite e a aflição, após idas e vindas desassossegadas pelos volteios e veredas do sol de cada coisa, dei as mãos ao domador de relâmpagos que habita a obra e, com ele, caminhei sob as chuvas de abril que molham os versos desse Sol, seguindo rumo às raízes fincadas nas páginas do livro, para explorar essa coisa de viver, essa coisa de viver a poesia de Batista de Lima.

Nessa aventura, deixei para trás as raízes, acalmei o meu desassossego e me deixei guiar pelo domador, embrenhando-me nos versos em busca do sol que clareia cada coisa, cada palavra, cada verso desse universo. Assim, deixando de lado os aportes teóricos, optei por fazer uma apreciação estética livre, movida pelo prazer da leitura, não se importando, portanto, com uma teoria que a fundamente. E nenhuma teoria se faz necessária para que possamos apreciar a beleza de um poema bem gestado, como Retorno ao mais puro olhar: (Texto III)

A mulher

Não falarei aqui de tantas coisas e tantos sois encontrados. Escolhi destacar um sol apenas: a mulher. Uma imagem fulgurante que habita a palavra de Batista neste livro. Refiro-me à imagem do feminino que se materializa nas partes da obra, em especial, no Desassossego. Uma personagem que surge e salta de poema para poema, ora uma, ora várias. É, pois, este o nosso intento: capturar essa imagem e apresentar aqui a representação artística de um perfil feminino que se cristaliza nas páginas da obra. O poema Desassossego, que nomeia a terceira parte do livro, legitima a leitura em busca desta mulher que, muitas vezes, nem se mostra explicitamente, apenas se faz desejada e surge, nas páginas do livro, pelo viés do desejo daquele que fala: (Texto IV)

A imagem de mulher que o poeta constrói em seus versos é uma mulher-múltipla ou múltipla-mulher que se revela numa sequência de imagens sinestésicas, como: olhar de clarim, pele que poreja rosa e carmim, doce pêra, alimento, mulher música que se espreguiça em pauta antiga, mulher também movimento, mulher-mergulho, desassossego, mulher-moinho de um poeta que se diz Quixote, mulher Maria que o levou e o perdeu... Exemplo desta imagem feminina se revela através do conceito de saudade que o poeta tenta formular no afã de definir a falta - Saudade: (Texto V)

Trechos

TEXTO I

Não sei com que roupa
Vou vestir o meu dizer
palavras são panos poucos
a cobrir tantos abismos

TEXTO II
Olhar as coisas em seus lugares
a sensibilidade da árvore
na tranquilidade
da noite enluarada
a cidade dormindo na madrugada
e o mar coçando manhoso
suas costas de acalanto.

TEXTO III
Depois de muitos verões/ aprendi a chover/ lagrimáguas/ sangue e seiva/ Tatu na toca sempre fui/ João-de-barro/ João-sem-barro/ depois de muitos trovões/ minhas paredes cederam/ O homem é um açude/ ventura é sangrar/ chorar é preciso/ Quando perguntei/ por mim/ ninguém respondeu/ ninguém soube responder/ ninguém soube quem era/ o amestrador de palavras/ o cultivador de fantasmas/ o guardião dos pardais/ ninguém disse conhecer/ o que restava apenas/ era um olhar de espanto/ a alegria das enchentes/ na sangria dos açudes/ no úbere das vacas leiteiras/ na véspera da parição/ quando perguntei por mim/ mostraram o adubo espalhado/ pelos caminhos que andei andando/ meu pai esculpido distante/ numa pedreira/ minha mãe impressa/ na lâmina escura da água/ do açude do pé da serra.

TEXTO IV
Cura-me desta enfermidade/ que é a vida/ envenena-me de esperança/ iludindo-me a cada instante/ para que eu transporte/ este grande fardo/ Enlouquece-me ao amanhecer/ para que nele não se instale/ o crepúsculo que se debruça/ no meu caminho./ Que meu desassossego seja a minha herança/ meu transporte e porto de chegada/ e em teu coração/ me esconda da tempestade/ abre-te pois em portas/ que eu estou de chegada/ Mas não deixes no entanto me achegar/ conserva-me ao longe e enfermo/ de paixão, loucura e mal-estar/ para que eu morra/ de viver me estranhando/ por saborear-me em ti eternamente.

TEXTO V
Saudade é tua presença estando ausente/ é este poço seco é este abismo/ no meu passo próximo esculpido/ Saudade é o chapéu do meu avô/ com as abas pandas de procura/ o sorriso de minha avó num cafuné dilatado/ Saudade é teu olhar de serra ao longe/ lá onde o sol brinca de se esconder/ e a chuva é súplica de alvíssaras/Saudade é a voz do teu falar/ que se negou a te acompanhar/ é essa fome de morrer/ por não viver no teu viver/ Saudade é um conteúdo sem continente/ uma paisagem sem ter quem olhe/ um olhar de um farol sem luz/ saudade é um poema que se reduz..

FIQUE POR DENTRO

Breves noções acerca do lirismo
De acordo com Massaud Moisés, em seu "Dicionário de termos literários" (São Paulo: Cultrix, 1974), a poesia lírica ser revela como sendo a poesia do eu, isto é, a expressão de uma confissão ou, ainda, a poesia da emoção. Desse modo, através da confissão de estados d’alma, de sensações anímicas, o poeta comunica ao leitor sentimentos que dizem respeito às pessoas como um todo. O tom emocional dessa poesia explicaria, assim, a sua intrínseca relação com a música, pois, esta, meramente sonora, parece traduzir os contornos íntimos e difusos do poeta, infensos ao vocabulário comum. Nesse contexto, a presença da metáfora é um dos recursos por que o poeta visa à expressão de conteúdos vagos da subjetividade sem lhes alterar a natureza. As palavras e as notas musicais se equivalem, num mundo vago, incorpóreo.

HERMÍNIA LIMA
COLABORADORA*
Professora da Unifor
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