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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O último ato (Paulo Lima)




Éramos os Rat Pack sem a fama, o charme e o talento dos Rat Pack. Foi tudo ideia de Bruno, o intelectual do grupo. Ele manjava horrores de cultura americana, mesmo sendo tão jovem. Herança do pai, um fã incondicional de Frank Sinatra e seu bando: Sammy Davis Jr., Dean Martin e Peter Lawford. Para Bruno, a Cultura e a História eram fontes inesgotáveis de sentidos e respostas. Mas no fundo éramos quatro universitários sem eira nem beira, uns estúpidos classe média autocomplacentes e com mania de grandeza. Isso é o que a gente era.
     
Além de Bruno havia Flávio, o tecnólogo, sempre às voltas com as novidades computacionais, num tempo em que os computadores eram máquinas enormes e ruidosas. Vivia tentando nos convencer de que o futuro seria cibernético. Andava pra todo lado com um surrado exemplar do Uma odisséia no espaço, de Arthur Clarke, no bolso. 

“Um dia, tudo será diferente”, ele costumava repetir como um Messias pregando a boa nova, ridicularizando os recursos tecnológicos dos quais podíamos dispor – tevês gigantescas, telefones de disco, calculadoras do tamanho de um tijolo.

Ricardo era o político dos Rat Pack, e enxergava em tudo um quê de conspiração. Suas convicções se inclinavam para a esquerda ou para a direita como uma biruta de aeroporto. Jamais a força dos hormônios fora tão decisiva para definir uma visão de mundo como no caso dele. No início dos anos 80, o mundo era mais maniqueísta. Russo ou americano. Preto ou branco. Ser ou Ter. Ricardo punha tudo no mesmo liquidificador e não estava nem aí.

Nenhum de nós possuía fervor religioso, fato que nos poupou tempo e discussões infrutíferas.

Hoje, no lugar frio em que estou, me veio a lembrança dos Rat Pack. É por causa deles que estou neste lugar. E é neste ponto que a nossa história recomeça, 20 anos depois.
                                                                          ***
Agora eu tenho quarenta, quarenta e poucos anos. Era um fim de semana como outro qualquer. Eu me recuperava de uma jornada extenuante no banco. (Quem diria, o escritor dos Rat Pack, o aspirante a romancista, foi parar num banco. Eu esganaria o zarolho do Sartre se pudesse alcançá-lo. Não existe livre arbítrio, monsieur, apesar de você tê-lo defendido tanto. O destino é uma teia que nos enreda desde o início. Mas disso a gente nem desconfia. Só vem a saber depois, quando tudo já passou).

Então eu me recuperava e o telefone tocou. Minha mulher atendeu. Disse "pra você", pôs o fone sobre a escrivaninha e saiu. Movi-me a contragosto. Atendi.

“Rat Pack!”, disse a voz do outro lado, como se fosse uma intimação.

“Sim?”

“Rat Pack!”, a voz voltou à carga. E seguiu-se uma gargalhada.

“Se isso é uma brincadeira...”, fui engrossando.

“Caralho, você tá o mesmíssimo careta!”, provocou a voz.

“Eu careta e você um filho da puta. Faz favor, sim?”

Desliguei. O telefone voltou a tocar. Minha mulher atendeu. “Pra você”. “O mesmo sujeito”.

Fui pra cima com gosto.

“Escute aqui, ô seu filho da p...”

“Caramba, Edu, você acordou mesmo valentão hoje, hein? Aqui é o Bruno, meu velho. Bruno. Rat Pack. Rat Pack. Rat Pack”.

A frase ficou ecoando em minha cabeça como ondas provocadas por um seixo atirado contra a superfície calma de um lago. Uma luz se acendeu lá no esconderijo da minha memória.

“Bruno! Rat Pack! What a long time!”, eu disse.

“Longuíssimo, caro Sammy, longuíssimo!”, Bruno riu com gosto.

“E a que devo a honra? E como me encontrou?”

“O passado bate à porta, Edu”, e foi logo desatando numa gargalhada. “Sacanagem minha. Foi sua irmã quem me falou de você”, ele explicou. “Eu a encontrei por acaso, outro dia”.

“E por que só agora, Frank?”, perguntei intrigado.

“Um encontro, caro Sammy. Quero reunir os Rat de novo. Você, Dean Martin e Peter”.

“Algo no estilo o último ano do resto de nossas vidas? Ah, mas você encaretou mesmo, hein Frank?”

“É a idade, Sammy, a porra da idade. E então, negócio fechado?”

“Negócio fechado, Frank. Onde, quando, a que horas?”

“Sunset Boulevard, Sammy, na Horse Tavern. Amanhã around 19h.”

“Serei capaz de reconhecê-lo, Frank? A você e aos Rat?”

“Sure, caro Sammy. Somos os mesmos garotos, eu, Dean e Peter”, e Bruno riu ainda mais alto.

“Com ou sem nossas mulheres, Frank?”

“Como nos velhos tempos, Sammy. Completely alone. Sozinhos, naturalmente.”

Uma torção do destino, um telefonema, uma voz do passado,  e sua vida vira de ponta cabeça. Destino. O destino, eu penso aqui neste lugar escuro e frio em que estou.

No dia seguinte, saí ao encontro dos Rat Pack, 20 anos depois.

A Horse Tavern era um pé sujo onde a gente costumava se reunir sempre às sextas feiras, depois das aulas. Os assuntos eram anárquicos e cobriam um amplo leque. Mulheres em primeiro lugar, as gostosas, as degustáveis, as que facilitavam as coisas. Depois a profissão; os cursos que havíamos escolhido nos dariam um futuro? Aí entrava política, música, cinema e tudo e tal. A típica conversa de boteco. Como Bruno tinha certeza de que o pé sujo ainda funcionava, tanto tempo depois? Eu já estava gostando do jogo.

Bruno seria o anfitrião da noite, e isso justificava o fato de que já estava lá quando cheguei. “Just in time, meu velho”, ele saudou com um sorriso efusivo, apertando minha mão e me estapeando nas costas. Depois me enlaçou pela cintura, me balançando pra um lado e pro outro, como se estivéssemos dançando.

Ele pouco havia mudado, embora metade do cabelo se tornara branco e metade sumira. Afora esse detalhe, ele podia contabilizar o tempo em seu favor. Ocupamos uma mesa perto da entrada. Sentei-me e começamos a bebericar uma cerveja, como os Rat Pack que fomos. Um carro buzinou lá fora e alguém acenou. “Flávio!”, falamos quase em uníssono. “Rat Pack, Rat Pack, Rat Pack”, ele gritou marcando o ritmo com o pé direito.

Também Flávio parecia o mesmo. Como, não se sabe, mas mesmo quarentão conservava a juba intacta. Apenas o tempo lhe somara uns tantos quilos. Aqui e ali, uma ruga discreta. Distribuímos tapinhas e abraços. Ricardo foi o último a aparecer. O mais político dos Rat Pack engordara, era o mais modificado de todos. Batemos as mãos na mesa e saudamos o velho buddy com uma saudação, um triplo Rat Pack.

Aqui no meu canto escuro e frio, me esforço para lembrar os detalhes daquela noite, do que Bruno nos contou, justificando o convite para um encontro tanto tempo depois, como se estivéssemos celebrando uma espécie de jubileu – talvez uma reunião privê dos formandos de 1984, ano em que nos graduamos, cada um em sua especialidade. Mas o que Bruno expôs era mais grave e urgente, algo que, de certo modo, envolvia a amizade, a nossa amizade:

My friends, estou muito doente. Vocês veem essa minha tez rosada? É tudo engano. Sofro de um mal incurável e não vou durar muito tempo. Minha mulher e meus filhos já estão conformados. Mas eu queria me despedir dos velhos amigos. E em grande estilo. Quero propor um rendez-vous em minha homenagem. Não poderia contar com outros amigos, senão vocês, para essa despedida, esse gran finale. O plano é simples. No próximo fim de semana vou dar uma festa na minha casa de campo. Apenas os Rat Pack e um grupo seleto de mulheres. Vamos comer, beber e amar até as últimas forças. Minha última esbórnia, minha resposta dionisíaca à sacanagem dos deuses. Vocês estão comigo? Como nos velhos tempos?

Tento me confortar neste lugar escuro e frio. Bruno me colocou numa situação difícil. Eu nunca imaginei que era essa a razão do nosso reencontro. Flávio foi o primeiro a romper o silêncio. Disse que faria qualquer coisa pelo amigo, e que o aspecto concupiscente do rendez-vous era algo de menos importância, pois há tempos saía com outras mulheres, sem que sua mulher tomasse conhecimento, embora desconfiasse.

Tudo ok para Flávio, mas não para mim, a última cidadela da fidelidade. Sentia-me ridículo às vezes por manter esse troféu retrô, enquanto todos se divertem com suas escapadelas. Esperei para ouvir Ricardo. Como eu deduzi, prevaleceu o espírito de corpo. Ele disse sim. Fazia tempo que ele e a mulher dormiam em camas separadas.

Coube a mim propor uma saída honrosa, alternativa à luxúria para os últimos dias de um condenado. Sugeri, sob os olhares de reprovação dos Rat Pack, que Bruno fizesse, ele e a família, uma viagem inesquecível, um roteiro que ele ainda não tivesse feito e pelo qual ansiava há muito tempo. “Meu caro Sammy”, ele contestou com convicção, “não há buraco distante neste planeta que eu não tenha visitado ao longo dos anos”. “Se propus um fim de semana de luxúria”, ele disse, “não é que ela me falte ou me faltou, mas é para afirmar o poder da vida diante da morte”.

Na amizade não tem pra quê, nem por quê, disse o poeta. Então eu concordei com o rendez-vous.

No dia combinado, fui encontrar os Rat Pack e celebrar a vida e a amizade. Em casa expliquei que era um fim de semana de trabalho, um encontro corporativo. Não deixava de ser.

Peguei a estrada, e numa curva perdi o controle do meu carro. No choque frontal com o outro veículo, pouco restou de mim. Isso não estava escrito, não para mim, mas ninguém escreve o próprio destino. Os Rat Pack devem ter estranhado um bocado a minha ausência. Sei que faria tudo pela amizade, por Bruno. Eu já estava a caminho. A culpa foi do destino.

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