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domingo, 3 de fevereiro de 2013

Achados e perdidos (Paulo Lima)




Para Júlia

            Kika está no cinema, o filme terminou, Kika está se levantando para deixar a sala. De repente, um objeto pesado lhe acerta o pé. Kika toma um susto, abaixa a cabeça, confere o objeto. Um celular. Ela dá uma olhada ao redor, tentando identificar quem o deixou cair. Mas as pessoas vão saindo todas ao mesmo tempo, provocando um pequeno tumulto. Os créditos do filme ainda deslizam pela tela, mas o interesse do público já está em outro lugar. No ambiente escuro, Kika puxa a mãe pelo braço e informa sobre o celular.
           
            – Você não desconfia de quem seja? – perguntou Laura.
            – Pode ser daquele rapaz de cabelos longos ali adiante – disse Kika.
            – Diego não viu nada? – quis saber Laura
            – Vi o quê? – questionou Diego
            – Sua irmã achou um celular.
            – Achou o quê?! – se espantou Diego.
            – Um celular, Diego, um celular, acabou de cair sobre os meus pés – afirmou Kika com irritação.
            Diego propôs uma solução rápida, para que pudessem sair logo do cinema.
            – Se não sabemos a quem pertence, vamos levá-lo conosco.
          Um brilho surgiu no olhar de Kika. Imediatamente ela embolsou o celular. Laura não disse nada, sinal de que concordou com a decisão. Eram duas da tarde. Todos estavam morrendo de fome, foram direto para a praça de alimentação do shopping.
            A essa altura, o filme já não significava nada para as crianças. Bem, talvez elas viessem a comentá-lo mais tarde, quando o pai pedisse detalhes sobre o que tinham assistido. Por dinheiro algum ele abandonaria o seu monastério particular do domingo para ver, ora essa, um blockbuster. Desse monastério faziam parte um ótimo romance em estado avançado de leitura e uma boa soneca. 
            Kika, Diego e Laura almoçaram uma lasanha. Um assunto monopoliza sua atenção – o celular. Kika põe a mão na bolsa e dá uma olhada no aparelho.
            – Mãe, não era melhor ter informado sobre a perda na portaria do cinema?
            – Ora, filha, e se eles ficassem com o celular?
       Havia um misto de preocupação e fascínio na atitude de Kika. O celular deixou-a hipnotizada. Bem, qualquer celular manteria uma garotinha de 11 anos naquele estado. Mas esse era especial. Ele surgira do nada, de repente. Como se fosse um presente. Agora estava bem ali na palma da sua mão. Por enquanto, pertencia a ela. Ela o examinou mais uma vez, sem acreditar.
            – Mãe, será que o dono vai ligar?

          Rodrigo adorava o domingo. Aquele instante de suspensão das obrigações cotidianas, das cobranças no escritório, dos compromissos – tudo se evaporava no domingo. Tudo que ele queria era... Ele não queria nada. Apenas estar a quilômetros de distância de qualquer tipo de problema. Ele abriu mais uma latinha de cerveja com um estalo seco. Encheu metade do copo. Bebeu vagarosamente. Pela décima vez naquele dia pensou em Isadora.
         Não existia antídoto melhor contra a monotonia da vida no escritório do que uma grande paixão. Não uma paixão material, um carro, uma casa nova, a motivação mais comum da classe média amorfa e ambiciosa. Mas uma paixão romântica, um devaneio da alma. E da carne. Isadora representava essa conjunção perfeita.
             
            A buzina do carro soou lá fora, eles estavam de volta. Rodrigo pôs a latinha de cerveja sobre a mesinha da sala de tevê.
– Já estou indo – ele disse, como se pudessem ouvi-lo.
Em seguida, foi buscar as chaves do portão e saiu arrastando as sandálias. Kika acenou, sorrindo para ele, quando o carro entrou pelo portão e passou rente a sua perna. Kika foi a primeira a descer e veio correndo mostrar-lhe o celular.
            – Veja o que achamos no cinema! – disse Kika, e foi logo contando toda a história com muita excitação.
            Rodrigo ouviu tudo, com ar preocupado. Depois ele foi conversar com Laura. – Por que você não entregou o celular na portaria do cinema? – gritou. – Meu Deus! Vão pensar que vocês o roubaram! – ele disse, quase sem fôlego.
            Laura argumentou que os empregados do cinema poderiam ficar com o celular, e que seria mais prudente, portanto, trazer o aparelho e esperar que o dono fizesse contato. Mas ela não convenceu Rodrigo. Com sua imaginação de romancista, Rodrigo visualizou a cena toda. A essa altura, o dono estava certo de que fora roubado, e devia estar tomando providências.
            Que providências seriam essas, ele não sabia. Mas tinha certeza de que o seu sossego do domingo estava irremediavelmente comprometido. Ele imaginou o telefone tocando, e do outro lado da linha um dono truculento os ameaçando.
            Laura tentou tranquilizá-lo, sem muito sucesso. Ela, sim, estava calma, não via nada demais em encontrar um celular no cinema e trazê-lo para casa. Errado seria deixá-lo nas mãos de estranhos, mesmo que esses estranhos fossem os empregados responsáveis pelo zelo e a segurança do cinema.
            – Meu Deus! – gritou Rodrigo, voltando à carga. – Vão dizer que vocês o roubaram!
            Alheia à discussão, Kika tinha ido para a sala e sentado no sofá. Com habilidade, ela ficou manejando o celular, explorando cada tecla, cada possibilidade, como se dessa forma pudesse descobrir a identidade do seu misterioso dono. 
            – Achado não é roubado, meu bem! – Laura brincou. – O que ficou fazendo sozinho esse tempo todo, hein? – ela disse, provocando Rodrigo, tentando envolvê-lo num abraço.
            Rodrigo se desvencilhou e foi sentar-se ao lado de Kika. Ele parecia sinceramente preocupado. Nascera numa família pobre, mas que jamais enfrentara qualquer tipo de acusação de roubo ou algo assim. Roubo era a palavra mágica que estava martelando sua consciência. Jamais se viu metido em apuros dessa natureza.
            – Papai, será que o dono vai ligar? – Kika perguntou, enquanto dedilhava o teclado do celular com um indubitável prazer.
 O engenho havia conseguido desviar sua atenção de várias manias. Uma delas era passar horas na frente do computador, conversando com as amigas na internet. Ela gostava também de pensar que era uma bailarina, e permanecia horas ensaiando os passos de uma dança imaginária, diante do espelho.
Laura estava no quarto descansando. Usava uma blusa curta que deixava aparecer os seios ainda duros, apesar de já ter passados dos 40. Um short apertava-lhe as coxas. Ela era mulher bonita. Pragmática, jamais se deixava levar por fantasias. Mas, nos poucos momentos em que se surpreendia pensando na vida, concluía que era feliz. De algum modo, as coisas se resolviam – era sua máxima.
Da sala vinham bips ocasionais do celular, sinal de que estava descarregando. Kika fora seduzida, estava claro. Não conseguia largar o treco. Rodrigo lia na poltrona ao lado. Ele parecia um pouco mais relaxado. Porém, advertiu Kika que não fizesse nada com o celular. Poderiam dizer, se o recuperassem, que ela havia se aproveitado do telefone.
De repente, Kika deu um grito tão estridente que assustou a todos. Diego, que ficara jogando no computador na sala ao lado, correu para ver o que era. Laura levantou-se de um sobressalto. Kika anunciou sua descoberta.
– Veja, tem uns vídeos no celular!
O primeiro vídeo mostrava os rostos de um jovem casal. Ele, ou ela, segurava o celular, enquanto filmavam a si mesmos. Não deveriam ter mais de 20 anos. Era óbvio que estavam num lugar com muito vento. Seus cabelos se alvoroçavam. Eram bonitos e com ares de bem nascidos. Ele a beijava na boca. Tudo não demorou mais de 15 segundos.
O vídeo seguinte era um pouco mais curto. A moça do vídeo 1 andava de biquíni na beira da piscina, como se desfilasse para alguém. E sorria. Uma visão que deixou Rodrigo excitado. O vídeo se interrompia bruscamente com uma mão aparecendo na lente.
O terceiro vídeo mostrava o para-brisa de um carro em movimento, filmado pelo lado de dentro. A câmera do celular fazia um travelling do lado esquerdo para o direito, e do direito para o esquerdo. Alguém brincava com a câmera. Estava claro que, seja lá quem estivesse filmando, não sabia como fazê-lo muito bem. Não foi possível identificar em que local a filmagem fora realizada.
Esses três filmetes deixaram a mente de Kika em ebulição. Era como se ela finalmente tivesse descoberto a identidade do dono do celular. Mas é claro que faltavam ainda muitas pontas soltas pendentes de solução para que o mistério fosse resolvido. Seria o casal dos filmes o dono do celular? Ou seja, ele ou ela seria o dono? E quem seriam eles? E o que faziam? E onde viviam, de fato? Sim, poderiam ser turistas de passagem pela cidade... 
Laura conhecia a filha e sabia que ela não conseguiria dormir naquela noite. Sim, ela não dormiria até que tivesse uma resposta para todas aquelas questões.
– Mãe, será que o dono não vai ligar? – Kika perguntou mais uma vez.

Será que ele (ou ela) não vai ligar? – foi o que se perguntou também Rodrigo. Sem perceber, ele também estava se deixando envolver. Da mesma maneira como estava soçobrando aos encantos de Isadora, a bela colega de trabalho.
Um dia, quando ele completou 42 anos, surgiu na empresa essa mulher de 22. Ela foi contratada como trainee. Da parte de Rodrigo, foi uma paixão à primeira vista. Ele jamais cogitara em trair a esposa, não se achava particularmente vulnerável. Mas essas coisas podem acontecer, não? Um dia, Isadora se ofereceu para uma carona, Rodrigo não viu nada demais nisso. Deu a carona. E a gentileza voltou a se repetir outras vezes. E um belo dia Rodrigo estava trepando com Isadora no apartamento dela. Coisas da vida.

Kika dormiu com o celular na mão. Laura retirou o aparelho da mão da filha, carinhosamente, e passou a mão nos seus cabelos. – A minha pequena heroína deve estar cansada – Laura sussurrou para si mesma. Ela acomodou Kika no sofá, pegou o celular e o deixou sobre uma mesa na sala de estar.
– Será que não vão ligar? – ela pensou. – As pessoas são tão apegadas aos seus celulares, por que não ligam para reclamá-lo? – ela refletiu.    
Laura caminhou até a cozinha, para preparar uma sopa para o jantar. Sabia que iria enfrentar a resistência de Kika e Diego. Eles não abririam mão de uma pizza, e ela não abriria mão de sua autoridade materna. Um tanto mecanicamente, Laura começou a cortar o tomate, depois a cebola. Em seguida, vieram os outros legumes. Abriu o freezer para retirar a carne. Num pote de plástico, separou a massa da sopa.  Diego apareceu na porta.
– Mãe, o dono do celular não vai ligar?
Laura suspirou, olhou para Diego procurando dissuadi-lo a não pensar mais no assunto. Que pensasse na segunda-feira, dia de aula e de compromissos. Mas como conseguir, se ela própria estava fixada naquele celular? Como um engenho diminuto e silencioso podia monopolizar a atenção de toda uma família? Um monte de coisas para fazer enquanto o domingo não acabava, e lá estava ela com uma tolice daquelas na cabeça. – Quando o dono vai ligar? – ela se surpreendeu questionando a si mesma.

Rodrigo deixou o livro de lado, acabara de ter uma ideia. Será que não examinaram a caixa de mensagens do celular? Quem sabe não haveria ali algum número gravado. Kika acabara de acordar. Rodrigo falou para ela o que estava pensando. Kika demorou a aterrissar, mas acabou acordando de vez. Adorou a idéia. Foram os dois até a sala. Rodrigo pegou o celular. Vasculhou a caixa de mensagens. Não havia nada.
– Pai, quando será que vão ligar? – Kika indagou.
Rodrigo deu de ombros e saiu da sala. Kika voltou para o sofá e foi brincar com o celular. Diego apareceu de repente, tomou o celular de Kika e fugiu com ele. Kika o perseguiu, até que se deu por vencida. Chorando, foi reclamar para a mãe.
Na cozinha, a sopa fumegava, um cheiro bom se espalhava pela casa. Laura abandonou seu posto, por uns minutos, e foi conversar com Diego. Tomou o celular e o guardou na gaveta do armário da sala de estar. Ela pediu que as crianças fossem lavar as mãos. Avisou a Rodrigo que a sopa estava pronta.
Laura pôs uma toalha limpa na mesa, arrumou os pratos, pediu que todos se apressassem. Rodrigo pediu que esperasse um minuto, estava num ponto eletrizante do livro. Diego trancou-se no banheiro e não ouviu a mãe chamar. Kika foi até a gaveta, pegou o celular de volta e ficou olhando para ele, distraída. Laura começou a pôr a sopa nos pratos lentamente. Kika apareceu na porta. Olhou para os pratos na mesa, depois teclou um número imaginário no celular. Repetiu o gesto.
– Mãe, já é noite, o dono não vai ligar?
– Sim, ele vai ligar logo, agora vá chamar seu pai e seu irmão, a sopa está esfriando.
Rodrigo e Diego vieram para a cozinha. Kika chegou logo em seguida, trazendo o celular com ela. Eles ficaram tomando a sopa em silêncio. 

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