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sexta-feira, 29 de março de 2013

Eutanásio (Homero Gomes*)





Nunca fui ao proctologista. Só esse nome me dava arrepios. Na sala de espera, parecia que todos olhavam para mim, acusativos. A culpa é toda sua. E a presença de minha filha piorava a vergonha. Mas o jeito era prever o pior. O teste do PSA tremulava nas mãos nervosas.

Há dias estava com dificuldade para urinar. Quando saiu sangue do dito cujo é que procurei um médico. Dizem que isso é coisa de homem. Você se diz machão, mas se arreganha todo quando entra num hospital.

A doutora era bonitona. Cabelo escuro e mechas claras nas pontas. Alta. Cheirosa. Boca carnuda e sorridente. Ainda bem que os dedos são finos, pensei.

O senhor poderia abaixar a calça e ficar ao lado da maca?

Gelei. Mas, antes, pedi que minha filha esperasse fora da sala. Os músculos tensos.

Quando percebi, a médica já estava pedindo que eu me vestisse. Foi só isso? Tanto alvoroço por nada? Fiquei com uma sensação esquisita na área por alguns minutos. Mas nada que justificasse o pavor que tinha.

O exame de sangue sugeriu o câncer. O exame de toque mostrou que já estava bastante avançado.

Eu tinha uma pedra enorme no reto. Uma couve flor endurecida. Estranho, pois eu não sinto nada disso. Mas vou começar a sentir.

Daqui a uns meses, começarei a urinar por um caninho. Ele fará parte de mim. Vou poder até escolher apelidos carinhosos. Tubinho. Canudo de ouro. Juca. Tibério. Chupim.

Não vai chegar a tanto. Já montei todo o aparato, minha ex-mulher sabe. E diz que não vai se meter. Só não contei pra filha porque ela é teimosa e não entenderia.

Não quero andar por aí todo mijado. Brocha. Fraco. Humilhado. Isso não é vida. E ela foi boa até agora, então não tem porque esperar seu azedamento. E vai azedar. Além disso, o câncer talvez apareça em outro lugar. E eu descobri que isso é muito comum.

Não vai ter jeito, não. O negócio é dar cabo de mim.

Câncer tem cura. Mas leva junto o resto daquilo que sobra da vida. Melhor não deixar que tudo piore. Não quero ver meu corpo desaguar. Vou me despedir de todos. Passear bastante com a filha. Pagar as contas atrasadas. Resolver a vida e esperar que a morte seja mais tranquila assim.

Num bilhete vou pedir que me desculpem pelo sofrimento e pela saudade, mas que precisava fazer jus ao meu nome.



*Homero Gomes - Autor dos ainda inéditos Sísifo Desatento (contos), Tempo do Corpo (romance) e Jamé Vu (que está sendo publicado na internet). Colaborou com Rascunho, Cult, Germina Literatura, Ficções e TriploV. Editor do blogue coletivo www.jamevu.tumblr.com


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