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terça-feira, 16 de abril de 2013

Bolaño em fuga (Paulo Lima)




      
Henrique Silva Montalbán é um brasileiro vivendo na Espanha. Nesse dia ele está com pressa, só tem meia hora para chegar a uma livraria na Calle de las Flores, numa ruela cercada de árvores no centro de Madri. Há dias ele tinha encaminhado um e-mail para seu pai Juan Montalbán, no Brasil, avisando que não ia demorar em comprar um livro sobre o escritor Roberto Bolaño e despachá-lo num prazo curto. O pai queria atender ao pedido de um amigo, o livro só estava à venda na Espanha. Mas o tempo foi passando, e, forçado pelo ritmo insano do cotidiano madrilenho, Henrique Silva Montalbán não pôde cumprir o prometido. Agora a tarde caía tão rapidamente como um meteorito. Henrique Montalbán não queria dar uma nova desculpa. 
            
Ele deu sorte. Entrou na ampla livraria, pediu o livro a uma vendedora com ar cansado, conferiu o título Bolaño salvaje, o preço e foi direto ao caixa. Pagou com cartão de crédito, numa única parcela. Devolveu o boa-noite à saída. Ganhou a rua. Iria mandar mensagem naquela mesma noite ao pai informando sobre o êxito da compra.


Ele deu azar. Tinha andado cerca de cem metros e tomado um atalho por uma ruela pouco movimentada, quando esbarrou num desconhecido bem mais alto do que ele. Henrique Silva Montalbán perdeu o equilíbrio, rodopiou e caiu. Nos breves segundos em que pôde finalmente se levantar e se refazer do tombo ridículo, se deu conta de que estava sem o livro e sem a carteira. Uma típica ação de um pick-pocket, como tantas outras nas ramblas no centro da cidade. Bucetaça!, protestou inutilmente, pois o ladrão tinha desaparecido.
        
            De: henrique@telnet.es
            Para: juan@terra.com.br  
            Papa, 
Um negócio aborrecido me aconteceu esta noite. Lamento informar. Ainda tenho o coração aos tropeços. Fui roubado. Em plena rambla madrilenha. Só o céu e as infinitas estrelas por testemunha. Um desalmado pick-pocket levou-me a carteira. E o livro, papa. O livro de Bolaño que eu tinha acabado de comprar! Não conte à mama
            Bjos,
            Henrique 
        
Juan Echevarria Irrgitú não precisou se esforçar muito para abandonar a cena do roubo. Logo ele se incorporou à massa de transeuntes numa rua movimentada, desceu para o metrô, tomou um assento no meio do vagão, apertando o livro contra seu corpo, aparentando uma postura indiferente. Apalpou o bolso esquerdo para sentir que a carteira roubada continuava lá. Precisou fazer baldeação em mais duas estações. Desceu, tomou um ônibus, rodou mais um hora, até que chegou num bairro da periferia. Subiu pelas escadas os seis andares de um prédio acinzentado e caindo os pedaços. Lá dentro uma mulher morena de cerca de 25 anos dava mama a um bebê. Juan entrou sem fazer alegria e se jogou num sofá mal cuidado, uma das escassas mobílias do minúsculo apartamento. Abriu a carteira, vasculhou seu conteúdo, viu um documento de identidade com a foto do brasileiro, uma carteira de motorista, uma de sócio da Real Sociedad de Tênis, e, o que mais o interessava, dinheiro vivo, cerca de trezentos pesos. Depois se voltou para o livro. Rasgou a embalagem, folheou algumas páginas. Num dos capítulos Rodrigo Frésan analisa o romance Os detetives selvagens. Juan Echevarria Irrgitú, um imigrante paraguaio perdido na Espanha, se identifica com a trajetória errática dos marginais Arturo Belano e Ulises Lima, os personagens principais do livro. Lê com sofreguidão, até cair no sono. No dia seguinte ele sai para resolver umas pendências com um comparsa mexicano. 
          
Às sete da manhã o metrô de Barcelona é o retrato do inferno, como em Tóquio, São Paulo ou Cidade do México. Juan Echevarria Irrgitú conseguiu entrar num vagão abrindo espaço aos empurrões e cotoveladas. Mas deixou cair o livro sobre Bolaño que trazia no bolso da jaqueta. A anciã Maria do Rosário Villalba foi quem o encontrou. Imediatamente ela cometeu a proeza heróica de resgatar o livro de um massacre inevitável. Duas estações depois ela desceu e foi se encontrar com sua neta Pilar Del Rios Villalba, uma linda moça de 18 anos. Juntas tomaram o caminho do shopping, a duas quadras dali, onde iriam fazer compras. Pilar Del Rios Villalba entrou numa loja de jeans, gastou duas horas provando o que melhor caísse em suas curvas bem desenhadas. Maria do Rosário Villalba, com a paciência típica dos anciãos, ficou esperando sentada numa confortável poltrona dentro da loja. Abriu o livro sobre Bolaño ao acaso, caiu justamente numa página em que a crítica Celina Manzoni analisava o conto “Putas assassinas”. E sem que soubesse explicar o porquê, foi abduzida pela força do texto escrito com maestria. Como sucede aos muito velhos, Maria do Rosário Villalba foi traída por um cochilo, deixando o livro cair. Quem o encontrou foi Pablo Parada Molina, naquele mesmo dia. 
           
Pablo Parada Molina é vigilante noturno num camping em Barcelona. Naquele dia estava de folga e decidiu viver uns momentos madrilenhos, visitando uma irmã no subúrbio. Depois foi comprar uma bota nova no shopping. O tempo era uma entidade com a qual Pablo Parada Molina convivia muito bem. Ele conseguia matá-lo perfeitamente, pois, além de um bom leitor, era dado a escrever. Dessa forma a rotina indolente que constituía seu ganha-pão, e que poderia se tornar num inferno para, por exemplo, um não leitor, era para ele deveras produtiva e, diria, fecunda. Naquela mesma noite ele tomou o trem para Barcelona. Abriu aleatoriamente uma página do livro sobre Bolaño. Era uma passagem em que Enrique Vila-Matas fazia uma exegese de 2666, o romance póstumo de 1.200 páginas que Bolaño deixou inconcluso. No texto Pablo Parada Molina lê uma referência aos crimes de Ciudad Juarez ocorridos no México, e que abrem a narrativa desse incomensurável romance de Bolaño. Pablo Parada Molina lembrou-se de uma mexicana fodedora que tinha encontrado tempos atrás no camping. Era uma socióloga de trinta e cinco anos e escrevia ou pesquisava para uma tese sobre o amante universal, e esse era o pretexto para que transasse com gatos e cachorros pelo mundo afora. O trem deslizava na noite estival, e não tardou para que Pablo Parada Molina caísse no sono. Ele acordou quando o trem dava sinais de que se aproximava de Barcelona.  
         
Foi preciso que o fiscal de trem sacolejasse Pablo Parada Molina para que ele despertasse do seu sono profundo. Ele percebeu que o livro sobre Bolaño não estava mais com ele e soltou um palavrão. Fazia horas que uma sueca cleptomaníaca, sentada na poltrona defronte para Pablo Parada Molina, tinha surrupiado o livro. Até então Pablo Parada Molina tinha confundido os olhares da sueca com propostas oblíquas de sexo noturno. Ingrid Svenka Töldberg era estudante de psicologia na Universidade de Estocolmo, tinha 19 anos e batia perna pelo mundo com o objetivo de entender seu problema psíquico. Há pouco regressara do Brasil, onde tivera um par de experiências pouco agradáveis. Numa delas tentaram currá-la numa rua escura de Salvador, na Bahia. Ela foi salva pelo gongo. Ingrid Svenka Töldberg tinha descido do trem a meio caminho entre Madri e Barcelona, numa pequena cidade que nem consta do mapa. De pronto foi procurar um albergue, que encontrou. Deitada na cama, sozinha num quarto, vestida só de calcinhas e sem sutiã, Ingrid Svenka Töldberg abriu o livro sobre Bolaño numa página ao léu, e era justamente o ponto em que o escritor Edmundo Paz Soldán falava sobre a família de Bolaño e seus hábitos de escritor. Ingrid Svenka Töldberg era uma aventureira nata, e logo lhe ocorreu a idéia de visitar a família de Bolaño na pequena cidade litorânea de Blanes, ali mesmo na Espanha. Ela anotou um esboço do roteiro da viagem em sua agenda e foi dormir. 
           
No dia seguinte Ingrid Svenka Töldberg acordou bem cedo, tomou café e seguiu para a estação de trem. No guichê ela abriu a bolsa, retirou o dinheiro da passagem, pagou e rumou para o terminal de embarque. O trem tomou o caminho de Madri, onde seria feita uma baldeação para outra localidade, dali para outra localidade, e para outra, e outra, até chegar na ensolarada Blanes, no litoral. No trem Ingrid Svenka Töldberg conheceu o turco Ahmed Alkbahr Seidajin, um sujeito galante que também estava indo para Madri. Ele falou das maravilhas do seu país, e Ingrid Svenka Töldberg retribuiu-lhe tecendo loas à friorenta Suécia. Depois de uma longa e animada conversa, Ingrid Svenka Töldberg foi ao toilete para dar uma mijada, e o turco Ahmed Alkbahr Seidajin desapareceu sem deixar rastros, levando o livro sobre Bolanõ. 
           
O turco Ahmed Alkbahr Seidajin reapareceu no bairro do Chiado, em Lisboa. Lá ele se encontrou com Al-Mahni, Al-Zahari e Al-Zezhri, três perigosos terroristas que planejavam executar uma explosão num local bastante movimentado da cidade lusitana. A polícia desbaratou a quadrilha e o plano foi abortado. Ahmed Alkbahr Seidajin foi o único que conseguiu fugir. Com identidade falsa, ele adquiriu um disfarce e partiu para o Rio de Janeiro. Ahmed Alkbahr Seidajin agora era um inofensivo cidadão indiano que atendia pelo nome de Panjir Shankar. Ele embarcou num vôo TAM sem dificuldades, e nas poucas vezes em que foi abordado no check-in da companhia expressou-se num inglês sofrível, porém passável. Desse modo partiu para o Rio de Janeiro. 
      
            De: henrique@telnet.es
            Para: juan@terra.com.br             
            Papa,
As buscas policiais deram com os burros n'água. Eles desconfiam de algum imigrante, um pick-pocket paraguaio, quiçá brasileiro (rss). É uma parada difícil para qualquer Sherlock, pois existem milhares nesta cidade. As ramblas estão infestadas deles, e também de putanas, aí, sim, brasileiras em sua maioria. 
Papa, desse jeito o português vai se tornar o idioma universal da putaria. 

Sinceramente, acho melhor comprar outro livro. Já me conformei com o prejuízo, 24 euros pro inferno. 
            Bjos,
            Henrique 
           
O avião da TAM sobrevoa o Atlântico e está a apenas duas horas da sua chegada ao Rio de Janeiro. Panjir Shankar conversa com uma estudante carioca que está voltando de uma temporada de estudos na Inglaterra. Fernanda Vargas é bonita sob todos os aspectos, com um diferencial arrasador, é culta e viajada. Panjir Shankar divide com ela a leitura do livro sobre Bolaño. Cada um defende com entusiasmo o capítulo que mais os agradou. Fernanda Vargas defende com entusiasmo um texto do livro que analisa o romance Noturno do Chile. E Panjir Shankar prefere se debruçar sobre as nuances biográficas de Bolaño e sua vida de nômade, precocemente encerrada aos 50 anos com sua morte na Espanha devido a problemas hepáticos. Fernanda Vargas dorme e deixa Panjir Shankar sozinho com seus pensamentos. Panjir Shankar dorme e deixa Fernanda Vargas sozinha com seus pensamentos. Panjir Shankar e Fernanda Vargas dormem e o avião da TAM finalmente se aproxima do Rio de Janeiro. Muitos passageiros se inclinam para a direita ou para a esquerda, dependendo da posição em que estão na aeronave, no afã de contemplar das alturas as belezas da cidade. Panjir Shankar e Fernanda Vargas trocam apertos de mãos, e se encerra ali a breve camaradagem aérea. Panjir Shankar começa a procurar um vôo que possa levá-lo ao Paraguai naquele mesmo dia, para novas conexões internacionais. Mas não irá embora sem provar um pouco as delícias do Rio de Janeiro. Toma um táxi para Copacabana. Ao deixar o veículo esquece o livro no banco de trás. O taxista Pedro Elias, codinome “Focinho de porco”, pois tem um narigão enorme, se dá conta do livro horas depois. Sem saber o que fazer com ele, sem qualquer apreço pela leitura, pois tudo que consegue ler sem bocejar são as páginas policiais do jornal Extra, leva o achado para um sebo ali próximo.  O dono do sebo paga-lhe uma quantia irrisória, o suficiente para duas cervejas. O livro passa a ser propriedade do Sebo Letra Livre, no coração de Copacabana. 
           
É sábado e Juan Montalbán está fazendo o seu passeio semanal por Copacabana. Um dos seus pontos favoritos é o Sebo Letra Livre. E é lá que ele encontra o livro Bolaño salvaje, roubado na Espanha das mãos do seu filho Henrique Silva Montalbán. Para Juan Montalbán, tudo era apenas uma grande coincidência, pois ele não tinha como saber que aquela era o livro originalmente furtado. Mas o fato é que essa história encerra uma moral literária. O livro que fora de Henrique Silva Montalbán, e de Juan Echevarria Irrgitú, e de Maria do Rosário Villalba, e de Pablo Parada Molina, e de Ingrid Svenka Töldberg, e de Ahmed Alkbahr Seidajin, e de Panjir Shankar, e de Fernanda Vargas, e de Pedro Elias, agora pertencia a ele, Juan Montalbán, que o entregaria ao seu amigo Antonio Guedes, conforme tinha prometido, mas que poderia vir a ser de outros e de ninguém. 

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