Translate

terça-feira, 2 de julho de 2013

O sertão de Riobaldo – 3 (Enéas Athanázio)



(continuação)


Riobaldo, sobrechamado Tatarana ou Urutu Branco, personagem central e narrador de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, em certa fase da vida andava invocado com a figura do diabo. É que corriam notícias de que seus inimigos haviam feito um pacto com ele e que isso os protegia nos combates. Riobaldo, porém, duvidava da própria existência do diabo, e, por consequência, não acreditava no tal pacto, uma vez que é impossível pactuar com o que inexiste. Não obstante, o diabo estava sempre nas suas cogitações.
  
                              Logo na abertura do romance ele se refere ao bezerro que havia nascido com cara de cachorro e que ria feito pessoa. Mataram, pois “determinaram que era o demo”. Embora afirme que não gosta do diabo, está convicto de que ele não existe. Entendia que sábios e políticos deveriam se reunir em assembleia e declarar “que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim davam tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!” Embora convencido, gostaria de ver a inexistência formalizada. Um jagunço que prezava a lei.

Mais adiante, depois de consultar seu ouvinte, afirma: “E as ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, o Que-nunca-se-ri, o Sem-gracejos. . . Pois, não existe!” Embora com tantos nomes, não existe. Mas, como ele próprio diz, de Tinhoso chega!

Outro problema, porém, bem mais atual e presente preocupa Riobaldo. É que ele, – abismado, alarmado e chocado, –  sente que está gostando de Diadorim mais que o gostar normal de um amigo. Não sabe como explicar o estranho sentimento. Afinal, ele é um jagunço, machão, o Tatarana, Lagarta-de-fogo, Cerzidor, Urutu Branco. E homem, muito homem. “E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar” – confessava, afirmando em seguida: “Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados... E eu mesmo não entendia então o que aquilo era?” Mas havia a meiguice de Diadorim, o cheiro dele, a beleza do rapaz que tanto o perturbava. “Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho...” É verdade que havia certos indícios estranhos, como a habilidade de Diadorim para cortar cabelos, o costume de só tomar banho sozinho e no escuro e algum “donaire” feminino. Nada disso, porém, gerou suspeitas em Riobaldo, mesmo porque Diadorim era duro, valente, corajoso como poucos e não titubearia em matar, se necessário. Desde o primeiro encontro, ainda garotos, ele demonstrou essa valentia. “Carece de ter coragem!” – repetia. E, diante da insólita situação, Riobaldo gemia: “A vida não é entendível!”

Mas a jagunçagem se espalha pelo sertão e os combates se repetem. Riobaldo é elevado a chefe do grupo, conquista a confiança de seus cabras e vence a luta contra os Hermógenes. No desenlace acontecido no Paredão, Hermógenes é morto, bem morto e matado, seu bando destroçado e os remanescentes perseguidos. No calor da alegria vitoriosa, no entanto, o vento traz a notícia da desgraça: Diadorim foi morto! Seu corpo é colocado sobre uma mesa e então a surpresa explode como uma bomba. Diadorim, na verdade, era uma moça, uma mulher, Maria Deodorina. Riobaldo soluça, as lágrimas queimam o rosto, chora, uiva de dor e desespero. “Daí, fomos, – relata ele – e em sepultura deixamos, no cemitério de Paredão enterrada, em campo do sertão. Ela tinha amor em mim...”

Em seguida repartiu o dinheiro e retirou o cinturão-cartucheira. “Aí ultimei o jagunço Riobaldo; Disse adeus para todos, sempremente.

“Resoluto saí de lá, em galope, doidável...”

(continua) 

/////