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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Mundos imaginados (Paulo Lima)




Sou um voyeur, mas não é nada do que você está pensando.

As palavras podem ter o efeito de um golpe contundente. As palavras podem ferir mais do que um punhal. Pavlov sabia disso muito bem. Mas os escritores, sem que necessitem ostentar em seus currículos nenhum tipo de estudo sobre o comportamento humano, também sabem disso. Então vou esclarecer que o voyeurismo a que me refiro não tem qualquer conotação sensual. Nada do que você possa estar imaginando.
E eu também conheço o peso que pode ser atribuído às palavras. Também sou um escritor. Meu voyeurismo consiste em observar os leitores. Não os meus leitores. Mas as pessoas que costumam frequentar livrarias. Não costumo observá-las por observar. O objeto do meu voyeurismo é capturar seus interesses.

E quando falo capturar, não há qualquer sentido vampiresco nisso. Não espero realizar uma conquista entre livros. Uma livraria é um ambiente comercial, onde as pessoas entram para passar o tempo e fugir do mundo real.

Elas buscam nos livros o que não podem alcançar na vida. É um mundo imaginário. E a arte não é nenhum tipo de bosque por onde caminhamos sem consequências. Nietzsche acreditava que a escrita é feita de sangue. Os paraísos que pensamos frequentar estão marcados pelas pegadas sangrentas de seus autores.

Sei que é uma opinião um tanto obscura, principalmente porque está sendo emitida por um escritor. Eu deveria ser um exemplo e estar, por assim dizer, imbuído de um ideal romântico.       

Mas eu perdi meu romantismo. 

Então eu observo os leitores, sigo-lhes as pegadas pelas estantes silenciosas das livrarias, procuro descobrir o que estão lendo, o que pagam no caixa e levam para casa. Gostaria de recuperar a fé que um dia depositei em meus primeiros livros capturando o otimismo dos leitores. E tentando, como escritor, deduzir como vivem suas vidas.

Não tenho um posto de observação. Deixo-me vagar pelas diversas seções. Mas algumas eu procuro contornar, como faria um demônio ao menor sinal da cruz.

As pessoas sequer se dão conta disso. Eu me aproximo de uma mulher e, fingindo que busco um título qualquer, lanço um olhar para o livro que ela tem em mãos, como se olhasse dentro do seu decote.

Às vezes os livros não possuem qualquer relação plausível com seus proprietários. Vi uma mulher alta, graciosa e muito bem vestida carregar um volume sobre a Segunda Guerra debaixo do braço. Ela parecia feliz, talvez por estar acompanhada do que imagino ser seu marido. Caminhavam de braços dados.

A felicidade da mulher, a leveza com que se movia, me deixou em êxtase. Mas associar sua bela figura à imagem da guerra era algo tão fora de propósito como um desses filmes em que o som da dublagem está fora de sincronia com os lábios dos atores.

Entro na seção de idiomas. Elas me fazem lembrar o quanto o mundo é grande, e isso me faz bem. É a forma como relativizo minha própria insignificância, esquecendo de mim mesmo. Quantas línguas não falo, e talvez nunca falarei? Antes de parecer um veredito, uma sentença determinista, tal fato me estimula. O que me impede que eu possa aprender um desses intricados idiomas orientais, por exemplo?

Vejo que um rapaz pede ajuda a uma vendedora. Ele quer indicações de literatura brasileira para um amigo americano, que está bem ali ao lado. O americano é louro e tem os cabelos longos, como se fosse um remanescente do sonho hippie.

A vendedora é gordinha e fala como se saltitasse, embalada pela empolgação. Ela leva sua tarefa a sério. Indica dois autores e tenta contextualizá-los. A explicação é deficiente, talvez tão limitada quanto o inglês que ela insiste em falar. Mas sua determinação me deu ânimo.

Algumas relações soam improváveis. Calibro meu radar para captar bem a conversação entre um homem jovem e uma senhora muito elegante. Conversam entre si com um carregado sotaque espanhol. Eles param diante da estante de importados e o homem pergunta à senhora se ela já havia lido um certo escritor turco.

Podemos andar quilômetros pelos espaços de uma livraria sem nos dar conta de tanto esforço, até que o corpo emita um sinal. Sigo até o café, pago um expresso, sento num banco alto e dou uma olhada de 180 graus. Alguns vendedores consultam seus terminais com ar grave, mas o ambiente está envolto numa calma de biblioteca. Olho através das janelas de vidro o trânsito lá fora e a agitação. Livrarias são grandes úteros, onde buscamos refúgio. É um pouco como a caverna de Platão, só que a escuridão está no exterior.

Numa poltrona, um rapaz com a sacola descansando sobre as pernas dorme. Para ele a livraria é um interlúdio entre o almoço e a volta ao trabalho. Os livros lhe são tão estranhos quanto a primeira lei de Lavoisier. Ele faz parte de uma legião para quem as palavras se assemelham a um dialeto distante e incompreensível.

Outro dia eu li uma pesquisa. A autora era uma especialista americana no estudo da linguagem. O que ela escreveu provocou em mim um desânimo. De acordo com essa renomada especialista, a linguagem é um fato recente na humanidade, e por isso ainda não estaríamos plenamente aptos a assimilá-la.

Meu corpo se deu por vencido. Os pés me doem. Escolho um livro sobre viagem e viajantes e me deixo afundar numa confortável poltrona. A luz direcional provoca uma agradável penumbra ao redor. Sinto-me aconchegado nesse pequeno útero, submerso no líquido amniótico. Uma sonolência me envolve como um ato de sedução. O autor do livro é um filósofo francês. É um livro pequeno e avanço sem dificuldade. Suas reflexões sobre o ato de viajar podem ser aplicadas aos livros e aos leitores. O filósofo escreveu que as pessoas viajam para, no final, encontrar a si mesmas.

As pessoas leem para aprender, descobrir, refletir, atingir novos mundos. Mas no fundo elas procuram a si mesmas. Os livros são o espelho onde elas poderão contemplar a própria imagem.

Alguém derruba um livro com estrondo. Ergo os olhos e observo um rapaz alto e magro folheando um livro de partituras. Está imerso em uma linguagem cifrada e, certamente, ouve uma peça para piano ou oboé, quem sabe uma sinfonia. Um sonho revestido pelo silêncio.

Retorno ao meu livro, divago. E então uma mão leve e acolhedora pousa no meu ombro. Uma mulher, não mais de 30 anos talvez, morena bonita, com um sorriso que poderia iluminar um quarteirão. Um perfume de jasmim vindo de seus cabelos me atinge em cheio, me inebriando. Ela segura um livro.

— O senhor é o escritor Antônio Loureiro, não é? — ela perguntou. Disse-lhe que sim. Ela me pediu desculpas por estar incomodando e, esticando o livro, me pediu que eu o autografasse.

Talvez eu tenha vislumbrado uma centelha de felicidade em seu olhar. Ela me disse que havia adorado meu livro anterior, e que nem acreditava que tivesse me encontrado ali, como um ser humano comum. Convidei-a para um café, podíamos conversar um pouco mais. Ela falou que sim. Talvez eu não estivesse tão desmotivado como pensei. Talvez ainda valesse à pena continuar escrevendo livros e viver meus mundos imaginados.

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