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domingo, 20 de outubro de 2013

O verniz dos mestres (Franklin Jorge)





Escrevendo à Condessa de Noailles, em 1904, confessa Proust que, se procuramos o que faz a beleza absoluta de certas coisas, por exemplo, a das “Fábulas” de La Fontaine e das comédias de Molière, vemos que não é a profundidade ou esta ou aquela outra virtude que parece eminente, mas a diversidade de recursos que levam à unidade e à superação dos obstáculos que fatalmente se interpõem entre o artista e a criação de uma obra.

E, acrescentando às complexidades do seu pensamento, faz-nos perceber que não seria uma espécie de fondu, de unidade transparente em que todas as coisas, perdendo o seu primeiro aspecto de coisas, vieram se colocar umas ao lado das outras numa espécie de ordem penetradas pela mesma luz, vistas umas nas outras, sem uma só palavra que fique de fora ou que tenha sido refratária a essa assimilação persistente, que nos faz pensar num de seus mestres, Baudelaire, que viu o artista como o verdadeiro herói, pois somente ele estaria apto a encontrar o prazer na solidão que resulta do trabalho de criação de uma obra. Suponho  conclui Proust  que é isto o que se chama de “o verniz dos mestres”.

Tem razão Proust, pensando assim. Dotado da visão poligonal das abelhas que enxergam tudo ao mesmo tempo, enxergou Proust ao escrever que somente as verdadeiras obras de arte possuem esse misterioso veludo que resulta desse esforço obstinado a que chamamos, algumas vezes, de técnica ou de experiência, dependendo de quem fala.

Como na escritura que se enriquece com as sucessivas reelaborações  ditadas por uma vontade exigente e inconformada , na pintura as diversas camadas de cores superpostas sobre a superfície da tela torna a matéria plástica preciosa e lhes dá, nuns artistas, o ar compacto e denso que constitui a sua assinatura; noutros, a transparência da luz obtida pelo virtuosismo através de uma paciente superposição de camadas duma tinta de tal forma diluída que cria a sensação de luminosidade, por assim dizer inefável,  mesmo quando sob a forma duma mancha provocada pela intempérie ou pelas injúrias do Tempo, como naquele famoso pedaço de muro amarelo pintado por Vermeer – que o narrador de Em Busca do Tempo Perdido considerava a mais bela pintura do mundo.

Somente um mestre, perito no manejo de sua arte, ou seja, de sua técnica, poderia criar essa magia ilusionista que resulta da persistência e da prática, da observação e da experiência, razão pela qual Rilke pôde afirmar que, para descrevermos ou pintarmos um crepúsculo, precisamos ter visto milhares deles.

Essa carta de Proust, dirigida a uma poetisa de alguma notoriedade em sua época, elucida o mistério da criação. Porém, ao contrário de Proust que sacrificou a própria vida à elaboração do seu romance-rio, por alguns considerado uma catedral de palavras, Anna de Noailles seria apenas mais uma dessas literatas mundanas e cultas, embora beneficiada por uma inegável habilidade no manejo das palavras, mas desprovidas desse verniz característico dos verdadeiros mestres; enfim, uma entre outras tantas mulheres que, da mesma forma, brilharam por um momento na constelação das letras e em seguida se apagaram e desapareceram, não subsistindo sua obra ao perecimento do próprio corpo.

Deveria ser lida e estudada [essa carta de Proust] por todo e qualquer aspirante a escritor. Através dela percebe-se, em toda a clareza, quanto a arte exige daqueles que avassala, reduzindo-os impiedosamente à solidão e ao silêncio, o que, para as almas fracas – ou não heróicas, segundo a concepção baudelairiana  –, seria uma forma de estar em vida mergulhadas previamente nos vapores do inferno, para onde, segundo Dante, vão de cambulhada os charlatães.

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