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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Passarinho de rota plumagem (Nilto Maciel)



 
Espalhei, sobre a mesinha de centro, 32 opúsculos chegados à minha vivenda nos primeiros dias de 2014. E brinquei: “Escolha seis ou sete, Cleto. Serão seus por alguns dias. Após a leitura, farei uma sabatina com você”. O ancião passou a manusear os objetos, feliz como pinto solto no terreiro. Então me decidi por uma advertência: “Não poderá levar romance e novela, nem conjunto de contos ou poemas”. Ao vê-lo entusiasmado com uma coleção de relatos, providenciei uma emenda à restrição: “Se o conjunto for de peças de vários autores, fique à vontade”. E ele escolheu estes: Proclamações (Brasília: Thesaurus, 2013), de Anderson Braga Horta; Fantasias de meia pataca (São Paulo: Intermeios, 2013), de José Antonio Pereira; Memorial do medo: Vivências de um ex-combatente (Chapecó: 2013), de Silvério da Costa; O aprendiz de poeta (Caxias do Sul: Maneco Livraria & Editora, 2005), de Cláudio B. Carlos; Inventário de desimportâncias (Belo Horizonte: Literatura independentchê!, 2013), seleta do grupo O Bodoque; e A arte poética de Aricy Curvello (Porto alegre: Plátano, 2013), de Cleber Pacheco.
             
Passada uma semana, Cleto Milani voltou ao meu casebre. “Trouxe os livrinhos?” “Sim; tudo anotado a lápis”. Antes de se iniciar a aula, dedicamos alguns minutos a poetas sem tutano e contistas sem sustança. E rimos feito meninos sem bola. “Faça observações a respeito do primeiro impresso, meu amigo”. Peguei a caneta e o caderno, disposto a fazer anotações. E ele, sem perda de tempo, falou por meia hora. Descontente, tomei-lhe a palavra:

“Em Proclamações, Anderson Braga Horta passeia vagarosa e atentamente pelo hinário de alguns bardos brasileiros de primeira linha. Em ‘Os erros de Castro Alves’ promove esmiuçamento da poesia do baiano. E é como se o víssemos exaltado, olhos arregalados, cabelos desgrenhados. Colhi esta reflexão: ‘Castro Alves abusa dos travessões e das reticências, às vezes das exclamações. Mas não são erros, e sim traços de estilo’ (...) Notável trabalho analítico”. 

Em pausa rápida, pigarreei e mirei o coitadinho. Parecia humilhado. Recobrei a razão e dei continuidade à lição: 

“A seguir, se debruça Anderson sobre o pernambucano Olegário Mariano. Ao tocar na questão ‘parnasiano ou simbolista?’ (pois muitos o consideravam ‘morador do Parnaso’, outros, ‘habitante do símbolo’), Anderson assim se manifesta: ‘Haverá mesmo diferenças radicais entre as escolas poéticas?’ O terceiro vate analisado por Anderson é Guilherme de Almeida. O quarto é Menotti Del Picchia ou seu poemeto ‘Juca Mulato’. Seguem-se Anderson de Araújo Horta (pai do Anderson de agora), de quem são transcritos uns sonetos e composições de formatos diversos; o pernambucano Waldemar Lopes; e o paulista Cassiano Nunes”. 

Em segunda pausa, fui à cozinha. E gritei: “Quer água?” Sim, se não causasse incômodo. “Pois venha até aqui. Hoje não temos Alice”. De volta à sala, quase não parei mais de tagarelar:  

“O oitavo literato estudado por Anderson é Ledo Ivo. O nono é Fernando Mendes Viana (morador em Brasília durante longos anos). O décimo é Joanyr de Oliveira. São escritores da predileção de Anderson, e alguns de sua amizade, todos avaliados sem paixão, porém com muito desvelo. São estudos breves e, ao mesmo tempo, de uma engenhosidade rara, consagrados a uma fatia da boa poesia brasileira desde Castro Alves até o final do século XX”.

Cansada a garganta, calei-me e fechei o artefato de Anderson. O bode velho precisava se exercitar como crítico: “Deixe comigo, pelo menos, uma das coletâneas”. Sim, soltasse o verbo. E ele empregou meia hora a examinar o repertório de José Antonio Pereira. Não consegui copiar quase nada. Só isto: 

Fantasias de meia pataca podem ser vistas como a radiografia, em forma de reminiscência, da juventude do autor, na cidade mineira de Cataguases. ‘Tornar-me artista era desde cedo minha ideia fixa’ (p. 13). São crônicas do passado e do presente (ou do passado recente) de José e sua turminha. ‘Na minha infância e adolescência era fissurado (era assim mesmo que dizíamos) em um jipinho’ (p. 153). É um passeio (embora numa cidade pequena) pela história recente do Brasil: ‘Entre os anos sessenta e setenta, ali na praça do baiano, a Rui Barbosa, havia um grupinho de jovens sempre sentados no banco em frente ao cinema dos Cunhas’ (p. 31). Sou admirador desse tipo de literatura nascida de rememorações (fantasias de meia pataca), sem saudosismo. Além de tudo, é bem escrito, em português de fácil entendimento, sem se afastar da norma culta ou da tradição literária. Por isso, Fantasias de meia pataca é literatura de verdade”. 

Mesmo exausto, meu visitante ainda proferiu umas palavrinhas a respeito de Memorial do medo: Vivências de um ex-combatente. Eis o resumo delas:  

“O português Silvério da Costa (radicado no Brasil desde 1960) conta a história de uma guerra (Angola) ou a história da guerra (qualquer guerra). Como o título indica, trata-se de autobiografia. O tomo é ilustrado com fotografias, nas quais figura o narrador, desde o embarque em navio, a chegada a Luanda (capital de Angola), os acampamentos militares, as pontes, as estradas, as sepulturas, cenas da guerra, os horrores. Trata-se de compêndio de riquíssima importância para a compreensão da história de Angola, da guerra travada em seu território entre tropas portuguesas (invasoras) e os nativos”. 

Depois de uns dez minutos de lengalenga inútil, aborreci-me: Deixasse de  acanhamento. Pegasse qualquer volume e abrisse o bico, com vontade de cantar, passarinho de rota plumagem. Tudo isso só no pensamento. Respeito muito meu comensal. E ele se pôs a parolar. Aqui vai uma ‘síntese reduzida’ de sua opinião: 

“Em A arte poética de Aricy Curvello, o gaúcho Cleber Pacheco realiza uma ultrassonografia dos escritos do alquimista mineiro. Composto de artigos, a brochura apresenta Aricy em diversos momentos de sua carreira. São cerca de 20 páginas apenas. O restante (segunda parte) é preenchido com listas de publicação, em periódicos e livros, de artigos relativos à arte de Aricy (totalmente irrelevante, como leitura, ou de interesse exclusivo de pesquisadores da história da poesia brasileira do final do século XX)”.

Com o objetivo de não aborrecer o leitor, combinei com o devasso morador do Benfica a divisão, em duas partes, de nossos apontamentos. E aqui se encerra a primeira, com alusão apenas a quatro das obras mencionadas na abertura destas notas. 

Fortaleza, 24/26 de janeiro de 2014.

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